União Estável
O Direito de Família, no que se refere ao presente ensaio, trata das relações afetivas denominadas genericamente por união estável. No entanto, para uma análise real e concreta do Direito de Família em nosso ordenamento jurídico, é necessário que comecemos pelos elementos que o constituem. Assim, a pressuposição prévia e efetiva é a de que se verifique a existência das diferentes formações familiares, e não apenas a da união estável, averiguar as suas origens e em que bases elas se sustentam.
Assim, se começássemos pelo direito de família, teríamos uma representação caótica do todo. Mas se a análise for por meio de uma determinação mais precisa, mediante análise das variadas formações familiares, desde a sua origem e a sua relação com as forças produtivas, chegando a determinações mais simples, tudo leva a uma representação atual do que seja a união estável e o direito que a regula.
Chegados a esse ponto, voltamos a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a família, mas desta vez não como uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas, ascender do particular (variadas formações familiares e mediações no seio da sociedade capitalista) ao geral (direito de família).
As relações familiares, ou seja, relações jurídicas, são constituídas a partir das relações de produção engendradas no seio da economia capitalista. Deste modo, a atual legislação sobre a união estável representa o conceito moral, econômico e social da classe mais forte dentro destas relações jurídicas formadas.
Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção, estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais.
A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual.
Segundo Marx, não é a consciência dos homens que determina o seu ser, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Só a partir da inserção da mulher como elemento ativo no sistema produtivo, ela poderá obter, pela sua independência financeira, a liberdade de escolha da modalidade de convivência familiar que mais lhe aprouver.
Pois a realidade histórica é criada por nós. É necessária uma compreensão mais acurada do dinamismo das transformações sociais, especialmente às relações efetivas engendradas em nossa sociedade.
Diderot alertava: “sou o que sou, porque foi preciso que eu me tornasse assim. Se mudarem o todo, necessariamente eu também serei modificado. O todo está sempre mudando”. No entanto, o conservadorismo das instituições cria mecanismos que dificultam a livre manifestação. Neste sentido, ainda Diderot, recomendava: “examinem todas as instituições políticas, civis e religiosas; ou muito me engano ou vocês verão nelas o gênero humano subjugado, a cada século mais submetido ao jugo de um punhado de meliantes”.
E finalizava: “desconfiem de quem quer impor a ordem”. As diversas formas de relacionamento afetivo, com as novas modalidades de família, estão em constante evolução. Sem se verificar qual o “recheio” do que seja o conceito da família, de quais elementos na vida real a constituem, teremos sempre uma visão truncada e estereotipada, uma visão parcial das reais transformações operadas em nossa sociedade.
Não se pode ficar submetido ao conceito tradicional e conservador, atualmente em vigor, no nosso Direito de Família. Precisa-se acompanhar a marcha inexorável da história. Sob esta ótica, a modificação do conceito de família só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o compõem. E que já ocorrem. Ao longo dos últimos tempos, num ritmo bem mais lento que o do regime jurídico-político, a nossa formação socioeconômica está se modificando.
O presente Tomo é uma crítica ao Direito de Família, especificamente quanto ao tratamento dispensado à união estável na Constituição Federal e no Código Civil. É um esforço metodológico para iniciar um novo caminho de análise da legislação familiar, atenta à realidade social que se manifesta nas várias modalidades constitutivas de família e que o ordenamento jurídico teima em ignorar.
Análise esta que busca apreender a origem das normas jurídicas em uma sociedade capitalista e reforçar o papel da emancipação humana. Pois a escolha da convivência matrimonial e dos seus efeitos patrimoniais cabe exclusivamente às pessoas nela envolvidas, na luta pelos seus direitos e independentemente de qualquer pré-requisito, livres da opressão do Estado e da sociedade. Não se deve esquecer que as ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos não depende de sua regulamentação jurídica formal. Elas existem por si só.
Os direitos universais do homem e do cidadão são declarados nas mais variadas instâncias. No entanto, a estrutura da sociedade não permite que tais direitos sejam verdadeiramente usufruídos por grande parte da população.
O formalismo jurídico, reflexo de uma moralidade oriunda dos tempos coloniais, atua como um instrumento ideológico de uma sociedade pretensamente democrática. Assim, não resta alternativa: os cidadãos como sujeitos de direito têm o dever de por ele lutar.
A união estável é “tolerada” pelo nosso ordenamento jurídico. Insiste que deve ser transformada em casamento. A opção pela união estável, com a atribuição conceitual de se referir a qualquer forma de convivência familiar que não seja o casamento, é um direito que deve ser instituído pelo seu caráter de universalidade.
O atendimento às reivindicações da união estável não é conflitante, pois não prejudica necessidade, carência ou interesse de qualquer outro grupo social ou indivíduo. Fica evidente, portanto, que esta tutela da união estável é uma questão puramente ideológica, moral e política.
A mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, vide art. 5º da Constituição Federal, mas possibilita que sejam criadas, pelos sujeitos de direito, variadas formas de reivindicação e de pressão social de modo que este direito se torne efetivamente real e não apenas formal.
O Poder Judiciário atua como superego da parte dominante da sociedade burguesa. A função da moralidade pública exerce-se, pelo positivismo jurídico, por meio da interpretação “conforme a lei” das normas do Direito de Família, como se fosse uma instância da consciência daquela sociedade que impõe seus valores “morais e éticos” aos demais. Atua na superfície e não busca a essência das normas.
O plano esboçado para este Tomo II, dividido em três partes, leva em conta a superação dialética que ocorre durante este processo de organização da família, dos seus fatos constitutivos, da elaboração das leis, dos seus objetivos, e de sua aplicação e interpretação. Pois é um processo dinâmico e contínuo de mudanças, de novos desafios, de novas sínteses que vão sendo elaboradas ao longo da história.
A natureza destas considerações ajuda a traçar um panorama da família no Brasil, que serve de pano de fundo para a compreensão do instituto da união estável e de sua aplicação nos dias de hoje.
Coerente com este plano de uma visão materialista da história, três abordagens são feitas em perspectivas diferentes, mas perfeitamente entrelaçadas entre si.
PARTE I — PERSPECTIVA HISTÓRICA
É uma análise histórica e materialista da formação da família. Fornece os elementos fundamentais para sua compreensão e as diversas formas que adotou ao longo da história, em um processo de superação dialética que chega aos nossos dias.
PARTE II — PERSPECTIVA JURÍDICA
Analisa a união estável no nosso ordenamento jurídico. Tem o caráter prático de compilar todas as referências normativas, além de conter algumas decisões judiciais que contribuem para esta análise. É realizado um confronto entre a visão idealista e materialista do direito.
PARTE III — PERSPECTIVA FUTURA
Esta terceira parte é uma síntese das anteriores. Vislumbra como seria a família do futuro, desta dita “união estável” que possa abranger todas as possíveis formações familiares, partindo-se da ideia de que seja constituída pela emancipação humana dos cidadãos e não por uma mera concessão legislativa, de uma simples emancipação jurídica.
Concluindo esta introdução, tem-se que o objetivo deste trabalho é despertar o Direito de Família do “sono dogmático”. Uma crítica à teoria e às práticas jurídicas, especialmente da hermenêutica. É forçá-lo a indagar sobre sua própria validade e sua pretensão ao conhecimento verdadeiro da realidade social.
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• Sumário
• Introdução (Tomo I)
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