De Vidas e Vínculos

Demandas por Dignidade: Experiências de Injustiça e Lutas por Direitos dos Trabalhadores de Plataformas Digitais

“L’exigence de justice au travail a été un moteur de la transformation des institutions.” Alain Supiot. Le travail de la justice dans l’histoire, 2022.

C’est injuste! O desabafo do trabalhador no documentário “A bout de course, les chauffeurs français contre Uber” está em francês, mas é perfeitamente compreendido em todo o mundo que vivencia a mundialização das práticas empresariais abusivas e de desconexão injustificada da plataforma digital promovidas pela empresa que distribui o trabalho e dirige a prestação pessoal de serviços pelos motoristas aos seus clientes cadastrados no App de uma das maiores empresas de transporte individual de passageiros e de entregas de produtos e serviços, externalizando o trabalho e os custos dos equipamentos.

Experiências de injustiça vivenciadas nas vias, calles, avenidas e ruas do mapa da vida de gente de carne e osso, engendradas por tantas outras na rede virtual do capitalismo digital que, como avatares desprovidos de alma e de pudor, constroem relações de trabalho moralmente indecentes. Experiências de injustiça acionam reivindicações morais e demandas por justiça.

Sans papiers, des livreurs Uber Eats réclament leur régularisation”. Publicada no do Le Monde poucos dias após a defesa da tese de Ana Carolina Paes Leme, a notícia demonstra como as lutas coletivas contra a precarização do trabalho, intensificada no capitalismo de plataformas pelas empresas que exploram de modo predatório a força de trabalho de pessoas em situação de vulnerabilidade, estão na ordem do dia. Em diversos países nos quais big techs espoliam leis, burlam regras e buscam impor um modelo de organização produtiva por meio de plataformas e aplicativos, sem proteção social e direitos trabalhistas, há reclamos contra as injustiças perpetradas pela gestão algorítmica, pelo unilateralismo das plataformas e que, em muitos momentos, eclodem em movimentos coletivos de resistência.

No mês de setembro de 2022, trabalhadores imigrantes desconectados unilateralmente pela Uber Eats francesa e sem perspectivas de sobrevivência, protestaram coletivamente contra a decisão da empresa de desconectá-los da plataforma sob o argumento de que suas inscrições seriam irregulares, por uso de documentos inválidos. O cancelamento das 2.500 “contas” foi realizado pela Uber Eats com a justificativa de ocorrência de “fraude documental” na criação dos perfis, bem como outras práticas tidas pela empresa como irregulares. A marcha dos entregadores agrupou mais de três centenas de trabalhadores pelas ruas de Paris, expressando coletivamente esta experiência de injustiça e suas demandas por justiça, reclamando regularização de seus vistos para permanência e trabalho e reconexão para manutenção da atividade de entrega e obtenção de renda.

Argumentam que suas atividades eram conhecidas e registradas pela plataforma, que utilizou largamente de sua força de trabalho durante a pandemia e os desconectou quando a calamidade sanitária cessou e o risco diminuiu. Reclamam, ainda, o reconhecimento de seu tempo de serviço prestado na França, necessário para os fins de obtenção do visto para trabalho e permanência no país.

O trabalho durante a pandemia, em risco acentuado de contágio, foi um argumento mobilizado pelos trabalhadores em suas denúncias contra a desconexão coletiva realizada pela plataforma ao final do verão francês. Na França, permite-se a regularização administrativa dos vistos de estrangeiros, residentes há mais de três anos, com trabalho remunerado por mais de 24 meses. Contudo, os procedimentos de regularização não estão acessíveis aos entregadores e a instabilidade decorrente da ausência de visto dificulta as demandas e as manifestações públicas dos trabalhadores. As manifestações dos entregadores sans papiers explicitam a dimensão de precariedade contida nesta atividade intensa e degradada, longe dos discursos de liberdade, bem como agregam o elemento da dupla condição de estrangeiros e estrangeiros indocumentados. Em recente pesquisa (2021), menos de 10% dos entregadores tinham nacionalidade francesa, sendo que maior parte dos entrevistados (85%) emigraram da África (31% da região do Maghreb e 54% da Africa subsariana). Os restos da colonização se evidenciam quando se observa que, em 2021, os entregadores de nacionalidade algeriana correspondem a 21% dos entregadores na França. Além da caminhada à sede da empresa, os trabalhadores organizaram bicicleatas, atos de protestos, demonstrando a força do que nasce quando se vivencia uma situação de injustiça, com reivindicações que permitam viver e trabalhar com dignidade.

Os relatos dos entregadores publicados pelo Le Monde demonstram o “sentimento de frustração” diante da desconexão coletiva promovida pelo Uber Eats depois de um longo período de trabalho arriscado durante a pandemia da Covid-19. Frustração pelos direitos sonegados, frustração pela despedida arbitrária abusiva e injusta, travestida de “desconexão”. No caso dos entregadores franceses, penso que a decisão de demandar relaciona-se à percepção de ruptura em uma confiança estabelecida, uma traição, a desilusão diante da impossibilidade de permanência no trabalho e, quiçá no país.

As experiências dos trabalhadores considerados “essenciais” durante os períodos de confinamento e distanciamento na calamidade sanitária e suas demandas por dignidade impulsionam ainda mais movimentos de resistência, de reconhecimento de direitos sonegados e pleitos por alterações normativas. No Brasil, com alta taxa de mortalidade e contaminação e inexistência de políticas governamentais ou regras que garantissem o fornecimento gratuito de itens de prevenção à contaminação pelo Sarvs-Cov2, os trabalhadores invisibilizados pelas plataformas realizaram manifestações coletivas, como o #brequedosApps e se organizaram. Com muito atraso e pouca proteção, a Lei n. 14.297/2022 estabeleceu medidas de prevenção e reparação devidas pelas empresas de aplicativos aos entregadores durante a calamidade sanitária, bem como a explicitação formal pelas plataformas das hipóteses de suspensão, bloqueio ou descredenciamento dos entregadores em seus termos de uso.

Impõe à empresa fornecedora do serviço que garanta ao entregador acesso à agua potável e às instalações sanitárias. Determina que a empresa proprietária do aplicativo contrate seguro capaz de cobrir danos decorrentes de acidentes sofridos pelos entregadores durante a atividade de retirada e entrega, bem como assegura pagamento de indenização e “assistência financeira”, calculada de acordo com a média trimestral dos valores recebidos, em caso de afastamento por Covid-19. Com vigência limitada ao período de emergência sanitária e aprovada depois de 18 meses de calamidade de saúde e mais de 500 mil pessoas mortas no Brasil, a Lei assegura que, em caso de afastamento de entregador em razão de infecção comprovada pela Covid-19, a empresa plataforma efetue seu pagamento por 15 dias, prorrogáveis por mais 30 dias (Lei n. 14.297/2022, art. 4o). O magro regime de direitos explicita o grau de precariedade dos entregadores, sem reconhecimento do assalariamento a que estão submetidos, desprovidos das proteções que as lutas sindicais, políticas e legislativas dos trabalhadores arrancaram no século passado, com a construção do constitucionalismo social, da seguridade social e do Direito do Trabalho.

Na agenda de debates sobre os entregadores e motoristas acionados por aplicativos, os temas da precarização do trabalho, da deterioração das condições de vida, dos elevados riscos à integridade físico-psíquica e de acidentes de trabalho, estão intimamente ligados com a sonegação dos direitos sociais que decorrem da (des)responsabilização das plataformas digitais em face aos trabalhadores, considerados como “parceiros”, “clientes”, “autônomos”, “prestadores de serviços”, em um movimento de fuga da legalidade juslaboral, com a reiterada recusa em reconhecer a presunção de assalariamento por parte das empresas.

Por sua centralidade, o assunto desperta o interesse de pesquisadores vinculados às boas universidades, sejam elas nacionais ou estrangeiras. Na área do Direito do Trabalho, assim como as pesquisas realizadas na UFRJ, na UFBA e na UFPR, também são precursores os estudos oriundos da Universidade Federal de Minas Gerais, centro de excelência e que conta com uma competente equipe de docentes e pós-graduandos. O livro publicado pela LTr Editora em 2019, de autoria de Ana Carolina Reis Paes Leme, “Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber” é um dos frutos do trabalho desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, assim como o é a obra que tenho a alegria de prefaciar, originária de tese de doutorado orientada pela professora Adriana Goulart de Sena Orsini (UFMG) e aprovada por banca integrada pelos professores Guilherme Guimarães Feliciano (USP), Ana Claudia Moreira Cardoso (UFJF), Maria Cecília Máximo Teodoro (PUC-Minas), Tereza Cristina Baracho Thibau (UFMG), Adriana Goulart de Sena Orsini (UFMG) e Raysa Sarmento de Souza (UFPA) e que mereceu a nota máxima, por sua qualidade.

De vidas e vínculos: as lutas dos motoristas plataformizados por reconhecimento, redistribuição e representação no Brasil” é fruto de um diálogo entre saberes acadêmicos distintos e de uma pesquisa empírica consistente. À rica e consistente análise, somam-se a crítica indispensável para a construção de saberes sobre relações jurídicas que envolvem fenômenos hipercomplexos e a bela escritura de Ana Carolina Reis Paes Leme, que nos permite uma fluidez de leitura e um rico aprendizado. A autora assume o desafio de aproximar os campos judicial e judiciário do acadêmico, com o objetivo de furar bloqueios ao acesso à justiça e contribuir para que o Poder Judiciário não sucumba às estratégias que conspiram contra o Estado Constitucional Democrático de Direito”. Em suas palavras, “a Justiça precisa não apenas tirar a venda — fazendo uma referência a Têmis, a deusa da justiça que tem os olhos vendados —, mas olhar de perto, percebendo as demandas anteriores e também aquelas concomitantes ao reconhecimento jurídico.” Não se trata, adverte Ana Carolina Leme, de agir com parcialidade ou de se distanciar à necessária imparcialidade intrínseca à função jurisdicional, mas de erigir uma “Têmis da modernidade”, que não seja “vendada, enganada ou manipulada”.

Graduada em Direito na Universidade Federal de Uberlândia, desde cedo Ana Carolina beneficiou-se da perspectiva interdisciplinar que as universidades públicas permitem ao se engajar no programa de iniciação científica no curso de geografia, sob os auspícios da UFU e CNPq. A construção social do espaço, o pensamento inovador e rigoroso de Milton Santos — intelectual brasileiro cuja obra é de leitura obrigatória a meu sentir — sobre o ambiente, o consumo, cidadania e globalização, influenciaram a autora a prosseguir para as áreas ambiental e quando percebeu como a “pobreza e as injustiças sociais afetam o meio ambiente natural, ‘debandou’ do Direito Ambiental para o Direito do Trabalho”.

No Direito do Trabalho, sua trajetória é de sucesso, pois foi aprovada em concurso público e empossada como servidora do Tribunal Regional do Trabalho na 3a Região e nos processos seletivos para os programas de Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais. Orientada pela competente professora e desembargadora Adriana Sena, escolheu seus temas de pesquisa a partir da percepção sobre a injustiça a que estavam submetidos os motoristas de Belo Horizonte que forneciam os serviços de Uber Black. Seu depoimento sobre os motivos da escolha dão conta de sua insatisfação com as injustiças cotidianas quando soube que um trabalhador que haviam buscado organizar um coletivo para dialogar com a empresa plataforma havia sido “bloqueado porque fez motim”. O mito da economia do compartilhamento começava a desmontar e a partir de congressos e discussões conjuntas entre diversos juristas do trabalho, a consistência das reflexões sobre as evidências empíricas conduziram à construção de um objeto de pesquisa dentro de um campo que se abria. Com os colegas José Eduardo de Resende Chaves Júnior e Bruno Alves Rodrigues, e apoio da editora LTr, organizaram o livro Tecnologias Disruptivas e a Exploração do Trabalho Humano. Seus artigos sobre “Uber e o Uso do Marketing da Economia Colaborativa” e “A Relação entre o Implemento das Inovações Tecnológicas Disruptivas e a Potencialização de Práticas Antissindicais” foram escritos durante o mestrado.

Durante a pandemia, assim como demonstraram nossas pesquisas na UFRJ sobre trabalhadores essenciais e judicialização, a “ação da pandemia” foi a reivindicação judicial por fornecimento de equipamentos de proteção individual, em um momento no qual o direito de emergência do trabalho no Brasil, ao contrário do que ocorreu em outros países, voltou-se para proteger a continuidade das atividades econômicas ou suspensão de contratos e redução salarial, em vez de instituir deveres claros para empregadores e tomadores de serviços de proteção à saúde e à vida de seus trabalhadores, com o fornecimento das medidas adequadas para proteção e prevenção. Se por toda a história será importante contar e relembrar os pequenos fatos que contribuiram para que mais de 670 mil famílias brasileiras perdessem seus entes queridos durante a emergência sanitária da Covid-19, para a academia brasileira é importante registrar os estudos que visibilizaram o papel que as instituições do trabalho — dentre as quais as entidades sindicais, o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho, cada qual com suas possibilidades e limites — desempenharam neste período de dor e luto. Enquanto no Rio catalogávamos as ações dos trabalhadores do setor de saúde e as respostas institucionais dadas pelos sindicatos e justiça do trabalho às necessidades prementes dos técnicos, enfermeiros e auxilares de enfermagem que lutavam pela vida, na UFMG a autora e sua orientadora refletiam sobre o mínimo de acesso para o acesso ao mínimo pelo Sindicato dos Trabalhadores em Aplicativos no Ceará. Foi então que os primeiros passos para a construção da pesquisa que resultou neste livro começaram, com a observação sobre o movimento sindical dos motoristas de transporte individual de passageiros por plataformas e a observação presencial da reunião de fundação da FENASMAPP, federação sindical assim denominada em virtude da autonomia organizativa que os trabalhadores têm, que a Constituição lhes assegura, embora a dogmática tradicional tenda a encarar de outro modo, pela discrepância com as formas jurídicas talhadas no ultrapassado título V da CLT. Paro por aqui, para não dar mais spoilers sobre o livro que tenho a alegria de prefaciar, não sem antes observar que a trajetória de uma doutoranda diz muito sobre sua tese.

Em sua tese, Ana retoma o pensamento crítico de Milton Santos, não à toa. Diga-me o que lês, diga-me o que vês, que te direi minha percepção sobre o que és. Lembro-me, então, do encanto que também tive ao ler que a globalização era fábula, perversidade, possibilidade, quando caiu em minhas mãos a brochura de “Por uma outra globalização”. Inovador, Milton Santos revelava a globalização como ápice do processo de internacionalização capitalista, mas antecipava a necessidade de compreender o fenômeno por um olhar conjunto sobre o estado das técnicas e o estado da política. A tecnologia das informações, a cibernética, a informática, a eletrônica (e, hoje, acrescentaríamos a IA e os algorítmos) que conformam o atual estágio das técnicas possibilitam a simultaneidade de ações, a aceleração do tempo e dos processos históricos, ao tempo em que o olhar para a política nos permite compreender que existem sujeitos que constroem, agem ou se omitem, para a construção desta história. O pensamento de Milton Santos esteve sempre presente nesta trajetória, ampliando o espaço dos saberes, abrindo caminhos e fornecendo lentes para ver um fenômeno que, assim como a globalização é, ao mesmo tempo, fábula, perversidade e possibilidade.

Que superadas as fábulas que nos contam sobre as plataformas, possamos nos sensibilizar sobre as perversidades que engendram as empresas que as desenvolvem e controlam com processos de trabalho precarizados e desprotegidos, para construir possibilidades de inclusão, movimentos coletivos e empatia. Da fábula da economia do compartilhamento, da perversidade do capitalismo de plataforma devemos engendrar possibilidades para que as plataformas sejam locais de encontro, trabalho digno e utopia de um mundo melhor.

 

De Paris para Minas Gerais, outubro de 2022.

Sayonara Grillo

Professora da Faculdade Nacional de Direito.
Desembargadora do Trabalho no TRT-1.

 

 

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