Direito, Tecnologia e Justiça Digital

Prefácio

Na ótica dos especialistas no mais novo ramo do Direito – o denominado Direito Digital –, “o ano de 2020 foi um divisor de águas em relação ao interesse pelo estudo e pela pesquisa das interfaces entre o Direito e a Tecnologia”.

Lembram que, segundo a experiência da vida, “a história muda por revoluções, guerras e pandemias, e foi justamente o último desses eventos, a devastadora pandemia da Covid-19, que promoveu as mais recentes e abruptas mudanças em diversos âmbitos da sociedade”. Entre elas, pode-se ressaltar na seara do Direito brasileiro (mas não só nela) que se deu “a potencialização de uma revolução digital silenciosa que ocorria desde a década de 1990 no campo do sistema processual e que foi acelerada com a forçada adoção das tecnologias digitais em inúmeros campos da atuação jurídica”.

Com efeito, foi de fato a pandemia, com a imposição de um trabalho exclusivamente remoto, que despertou o interesse maior pela virada tecnológica que viria a empolgar a atividade jurisdicional, aqui e, de resto, no mundo todo.
Para enfrentar a crise crônica vivida pela justiça, registra o Ministro Ricardo
Villar Bôas Cueva que, no Brasil, a integração dos meios adequados ou alternativos de solução de justiça remonta à Resolução n. 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça, da qual emergiu uma política judiciária de real estímulo a essas técnicas, num esforço de abreviar e humanizar a superação dos litígios. A Lei de Mediação (Lei n. 13.140/2015) e o Código de Processo Civil de 2015 deram concretude a essa política, especialmente, neste último, o art. 165, que determina a criação pelos tribunais, de centros judiciários de solução consensual de conflitos (CEJUSCS), e o art. 334, que cuida da audiência de conciliação e mediação.

Paralelamente às ADRs (sistemas alternativos de resolução de conflitos), o Código de Processo Civil de 2015 cuidou de consolidar a informatização do processo judicial – já prevista e regulada, em suas bases, pela Lei n. 11.419, de 19.12.2006, dedicando, a codificação, os arts. 193 a 199 à disciplina da “prática eletrônica de atos processuais”. Delegou, outrossim, competência ao CNJ para “regulamentar a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico”, assim como para disciplinar a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos, cabendo-lhe, para esse fim, editar os atos que se fizerem necessários, respeitadas as normas fundamentais do CPC (art. 196). Tudo com o declarado propósito de agilizar e tornar mais eficiente o processo judicial, por meio dos modernos recursos da informática.

Promovendo uma autêntica “virada tecnológica” do sistema judiciário brasileiro, o CNJ tem editado numerosas e significativas resoluções e adotado importantes práticas, reveladoras de que “vem desempenhando a missão que lhe atribuiu o art. 196 do CPC/15, direcionando significativos esforços para a implementação de tecnologia e inovação no sistema de justiça nacional”.

Mas, as iniciativas do CNJ e as respectivas resoluções direcionadas à implementação de tecnologia no sistema de justiça, em verdade, aceleraram-se tremendamente no ano de 2020, em razão do doloroso impacto da pandemia da Covid-19, e do início da gestão promissora do Min. Luiz Fux no CNJ. Seu discurso de abertura do ano judiciário de 2021 bem revela o progresso do programa de aprimoramento tecnológico experimentado pelos serviços judiciários brasileiros nos tempos atuais:

No presente ano de 2021, o cidadão brasileiro terá um Poder Judiciário completamente reformulado. O programa Juízo 100% Digital, que assegura ao cidadão brasileiro o direito de escolher a tramitação integralmente virtual do seu processo judicial, já é adotado em mais de 900 varas no país. Igualmente, o Supremo Tribunal Federal caminha a passos largos para se tornar a primeira Corte Constitucional 100% digital do globo, com perfeito alinhamento entre inteligência humana e artificial para oferecimento on-line da integralidade dos seus serviços jurisdicionais. Além disso, inauguramos plataformas digitais para dinamizar as ações de conciliação e de mediação, por meio das ODRS (on-line Dispute Resolution). No Supremo Tribunal Federal, o Centro de Conciliação honrosamente receberá em 2001 ministros aposentados, que muito contribuirão com a Corte e com a sociedade nesse novo modo de fazer justiça.

Segundo dados oficiais do CNJ, durante o ano de 2019, apenas 10% do total de processos novos ingressaram fisicamente na justiça nacional. Ou seja, no acervo de ações novas, 90% dos processos já foram iniciados eletronicamente. Em apenas um ano, entraram 23 milhões de casos novos eletrônicos. E em onze anos da série histórica do Relatório Justiça em Números do CNJ, foram protocolados no Poder Judiciário nada menos que 131,5 milhões de casos novos em formato eletrônico. Em 2020, repetiu-se o mesmo percentual de 90% de processos novos ajuizados pelos meios eletrônicos. Vários Tribunais de Justiça destacaram-se no mesmo ano, por alcançar 100% de processos eletrônicos nos dois graus de jurisdição, como os do Acre, Alagoas, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Paraná, Sergipe, Tocantins, além de diversos Tribunais Regionais Federais e do Trabalho.

Dados estatísticos revelam que o impacto da pandemia da Covid-19 levou os grandes Tribunais, a exemplo do TJMG, a impulsionarem a conversão, em massa, dos processos físicos em virtuais, fazendo antever que, em curto período de tempo, todos os tribunais do País terão a totalidade dos respectivos acervos de processos tramitando em formato 100% eletrônico.

Na etapa da automação, as iniciativas brasileiras são, também, vistas como promissoras. Há cerca de pouco mais de um ano, “o CNJ assumiu, definitivamente, a missão de coordenar as iniciativas para a implementação de tecnologia no sistema de justiça nacional, por meio do Sinapses e da criação do laboratório inova PJE, com os quais se pôde pôr instrumentos de inteligência artificial a serviço de criação de classificadores e modelos algorítmicos, de grande utilidade, por exemplo, no processamento e decisão de processos de massa ou de causas repetitivas.

O cenário brasileiro, como se vê, aponta para uma firme consolidação da chamada Justiça Digital e uma etapa bastante avançada de automação com apoio em instrumentos de IA. Por último, a Justiça Digital também se acha bem desenvolvida, no tocante, por exemplo, ao incentivo à utilização de ODR (on-line dispute resolution) para condução de conciliações e mediações em ambiente virtual, com a criação de plataformas específicas para gestão de determinados tipos de conflitos (cf., v.g., a Resolução n. 358 do CNJ, de 02.12.2020).

À luz dessa intensa convivência do sistema judiciário com o mundo tecnológico e virtual, reveste-se de grande atualidade e notável relevância jurídica, o estudo de James Magno Araújo Farias, ora dado à publicação sob o título de Direito, tecnologia e Justiça Digital. A obra corresponde à tese com que o autor, ilustre e experiente magistrado brasileiro, concluiu seu doutoramento em Ciências Jurídicas na Universidade Autónoma de Lisboa. Explorando comparatisticamente a experiência do direito digital em Portugal e no Brasil, o núcleo da tese ocupa-se com “o uso de ferramentas digitais em busca da razoável duração do processo”.

Entretanto, o caminho percorrido para alcançar a meta visada pela tese foi longo e riquíssimo, tendo abrangido não apenas o campo restrito do Direito, mas toda a análise histórica do desenvolvimento ocorrido na gerência do trabalho, na automação, na computação, na robótica. Procedeu-se, com merecido destaque, à demonstração do impacto da internet e de seus derivados no mundo atual, até chegar às principais ferramentas eletrônicas adotadas pelos sistemas processuais de Portugal e do Brasil.

O trabalho, de cunho multidisciplinar, não se limita ao plano teórico, desce ao campo da experiência prática, valendo-se dos dados estatísticos e analíticos obtidos, primeiro, do estudo do conjunto formativo das Escolas de Magistratura no Brasil e em Portugal, e, depois, da análise crítica minuciosa da atuação dos organismos oficiais encarregados da implantação e desenvolvimento das práticas digitais e de inteligência artificial no seio da justiça.

Culmina a tese, convincentemente, com a firme demonstração de que “as novas ferramentas digitais resultaram em melhorias substanciais no tempo de transmissão processual”, concorrendo progressiva e promissoramente para a implementação da garantia constitucional da duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII).

Uma importante advertência, contudo, é feita e merece toda ponderação dos cientistas jurídicos:

Ao longo deste trabalho, verificou-se que a sociedade digital está sendo regida pelos algoritmos. Porém, um algoritmo não tem vida própria, pois é fruto de muitas combinações de programas interesseiros, com os mais variados propósitos. Por isso, o ser humano não deve abdicar da posição de estar no comando da tecnologia, sob o risco de virar refém dela. Da mesma forma, o juiz não pode ser tolhido de suas liberdades decisórias no processo, para não virar mero ratificador da vontade da inteligência artificial e tornar-se um mero juiz boca de algoritmo. A humanidade pode orgulhar-se de todas as suas conquistas científicas. Mas, há, de fato, um risco real embutido no culto à perfeição digital, na idolatria exagerada da tecnologia e na irrefreável sanha humana por novos experimentos científicos. Por tais razões, devem ser impostos limites éticos e jurídicos para minimizar os riscos de experimentos que possam sair do controle e gerar efeitos desastrosos. E isso se aplica plenamente no uso de inteligência artificial no processo judicial.

Pode-se, enfim, apontar o estudo ora prefaciado como uma importante contribuição, douta e criteriosa, ao mundo do Direito Digital, fazendo jus o autor a aplausos pela excelência e profundidade que logrou dar à obra, motivo pelo qual não titubeamos em recomendar sua leitura a quantos se acharem efetivamente interessados em conhecer e desvendar os meandros do inevitável Direito Digital.

Belo Horizonte, março/2022.


Humberto Theodoro Júnior

Professor titular emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

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