Direito, Tecnologia e Justiça Digital

Introdução

Até a década de 1980 os juízes redigiam suas sentenças em máquinas de escrever mecânicas; iniciaram a década de 1990 utilizando máquinas eletrônicas da IBM e entraram no novo século com suas atas de audiências digitadas em computadores com o editor de texto Microsoft Office. O século XXI representa o auge da evolução científica e tecnológica da humanidade, sendo a internet o seu motor central. Na atualidade, soluções digitais como Gmail, Netflix, Amazon, Kindle, Deezer ou YouTube fazem parte do cotidiano de um morador de Lisboa, da Cidade do Cabo ou de São Luís do Maranhão, interconectados reticularmente em gigantescas “nuvens” invisíveis através da internet.

A tecnologia tinha de chegar ao Direito. O sistema judiciário, sempre muito criticado por conta de sua lentidão processual, seus formalismos históricos e suas liturgias conservadoras, também teve de se adaptar às grandes transformações sociais resultantes da quarta revolução tecnológica iniciada no final do século passado. E essa evolução deveria, necessariamente, passar pela melhoria do acesso à justiça, com a incorporação de ferramentas eletrônicas para gerenciamento administrativo e para uso processual.

No século XXI, Portugal e Brasil continuam a manter um constante intercâmbio de ideias e juristas, possuem sistemas judiciais que interagem e se reconhecem em conceitos, princípios e terminologias comuns. E, adaptando-se à realidade tecnológica, ambos os países já têm processos judiciais em formato totalmente eletrônico, sem necessidade de uso de papel, e que são armazenados em  bancos de dados digitais, acessíveis através da internet; além disso, têm desenvolvido outras ferramentas eletrônicas processuais, que podem ser acessadas através de computadores, notebooks, tabletes ou smartphones.

Em decorrência da terrível pandemia da Covid-19, que paralisou quase todo o mundo em 2020 e 2021, foi decretada quarentena obrigatória em muitos países, inclusive no Brasil e Portugal, fechando-se comércio, escolas, universidades e, também, os fóruns, sob a necessidade de cumprir as regras sanitárias de isolamento social diante do alto risco de transmissão do coronavírus. Graças à tecnologia e ao processo judicial eletrônico, os magistrados continuaram a trabalhar, a julgar e a dar andamento aos processos. Além disso, os juízes passaram a fazer audiências e a atender advogados e litigantes remotamente, através de programas de videoconferências pela internet. Assim, os magistrados tiveram de adaptar-se rapidamente às novas exigências que a pandemia impôs, a fim de continuar a prover a tutela jurisdicional. Se, antes da pandemia, já se discutia o uso de eletrônica no sistema de justiça como uma importante ferramenta auxiliar, após 2020, os meios digitais tornaram-se uma realidade sem volta!

No primeiro capítulo será estudada a evolução tecnológica e científica desde a Primeira Revolução Industrial, iniciada no final do século XVIII, com a maquinaria a vapor e a construção dos primeiros direitos laborais. Na sequência, será analisada a Segunda Revolução Industrial, movida pela eletricidade e pelo petróleo, após a segunda metade do século XIX, quando houve um enorme salto tecnológico e científico da humanidade. Depois, será analisada a Terceira Revolução Industrial, no pós-Segunda Guerra Mundial, quando a computação deu início à era digital. E, por fim, será estudada a Quarta Revolução Industrial, movida pela internet, algoritmos, inteligência artificial e pelos aplicativos para telefones móveis e computadores.

Será analisado o tempo da história no qual se encontra a humanidade, bem como o enorme impacto da computação e da internet sobre diversas áreas da sociedade, de governos e de empresas. Por fim, será estudada a nova morfologia do trabalho humano diante das grandes mutações em suas estruturas orgânicas, sob influência das novas tecnologias, da Gig economy e das diversas plataformas digitais, no denominado Mundo 4.0.

O segundo capítulo abordará a relação do Direito com a tecnologia, analisando-se os conceitos de Direito Digital, de Justiça Eletrônica (e-Justiça) ou Justiça Digital. A migração tecnológica do processo físico para o formato digital demonstrou os impactos da tecnologia no sistema de justiça, formando uma sólida base para uma Teoria Geral do Processo Eletrônico. Ainda no segundo capítulo será analisada a importância da edição do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (RGPD), da Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil (LGPD) e da Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia (CCPA), instrumentos jurídicos que tutelam a urgente e imprescindível proteção dos dados pessoais na internet.

As novas regras para proteção de dados serão, importantes meios para prevenir ilícitos e danos, bem como servirão de blindagem em relação aos múltiplos interesses que envolvem o gigantesco fluxo de informações do denominado Big Data. Aumentou, também, a preocupação com a segurança nos sistemas informáticos, diante do tráfego incessante na internet de vírus, hackers, crackers e spam.

o terceiro capítulo serão destacadas as principais ferramentas digitais existentes para uso processual em Portugal e no Brasil. Em 2019, havia cerca de oitenta milhões de processos em tramitação nos tribunais brasileiros e quase um milhão de processos em andamento nos tribunais judiciais, administrativos e fiscais portugueses, a maioria com notória lentidão e atraso em sua solução judicial.

Diversas causas podem ser apontadas para a existência desses fatos: uma atuação jurisdicional concentradora, na qual o Estado-Juiz historicamente tentou agir com exclusividade na condução da solução de conflitos intersubjetivos. Ou, ainda, pela tradicional dificuldade que as partes conflitantes têm na autocomposição, mediação e arbitragem.

A incorporação de novas ferramentas eletrônicas pelos sistemas de justiça de Portugal e do Brasil alterou substancialmente a estrutura processual de ambos os países, desde a primeira década do século XXI, como parte da tentativa de reverter suas históricas letargias forenses. O Ministério da Justiça em Portugal e o Conselho Nacional de Justiça no Brasil têm, cada qual, formulado políticas judiciárias para tentar aperfeiçoar a qualidade dos serviços prestados pelos seus sistemas de Justiça.

Ver-se-á ao longo do trabalho quais são as principais ferramentas tecnológicas processuais luso-brasileiras; será discutida a incorporação de tecnologias mais recentes, como a aplicação de inteligência artificial ao processo judicial eletrônico; por fim, será analisado o custo da manutenção dos parques tecnológicos informáticos judiciários em Portugal e no Brasil.

No quarto capítulo será analisado o princípio da razoável duração do processo eletrônico (e-processo), bem como o dever atribuído ao sistema de justiça de assegurar os meios necessários para a celeridade processual. A Constituição da República Portuguesa consagrou o princípio da razoável duração do processo no art. 20º, quando garantiu aos litigantes um prazo razoável para a decisão da causa em que intervenham. A Convenção Europeia de Direitos do Homem, de 1950, já continha regra em sentido idêntico. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que prevê um julgamento em prazo razoável por um tribunal competente, independente e imparcial.

A reforma constitucional gerada pela Emenda n. 45, de 2004, inseriu no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal o princípio da razoável duração do processo. Esse capítulo tratará também da qualificação técnica de magistrados e de funcionários para usar as ferramentas digitais, diante da construção de um novo modelo de gestão de educação das escolas judiciais, a fim de lhes permitir ter um completo domínio das ferramentas tecnológicas adotadas. Para isso, será estudado o conteúdo formativo das escolas de Magistratura no Brasil e do CEJ em Portugal, bem como serão estudadas as características dos perfis geracionais dos juízes luso-brasileiros.

Ao longo deste trabalho algumas questões fundamentais serão suscitadas. A primeira é se o uso de tecnologia eletrônica pode gerar uma substancial melhoria processual. Para obter essa resposta impõe-se a análise de dados estatísticos oficiais colhidos depois da instalação do processo eletrônico em Portugal e no Brasil. Outro aspecto será analisado: será que a migração do processo físico para o digital em pouco tempo (menos de cinco anos entre o anúncio e a implantação) e a quantidade de ferramentas tecnológicas existentes nos sistemas de justiça dos dois países lusófonos já tiveram efeito positivo sobre ambos? Também será analisado o custo da manutenção dos parques tecnológicos informáticos pelos dois sistemas de justiça, a fim de saber se o investimento em novas ferramentas eletrônicas, que consomem altíssima fatia do orçamento judiciário, pode ser justificado.

Por fim, indagar-se-á se essas ferramentas digitais têm o condão de melhorar efetivamente o acesso à e-Justiça, de levar a julgamentos mais rápidos e de reduzir os prazos processuais médios em relação aos existentes antes da primeira década do século XXI.

Assim, os argumentos centrais deste livro estão ancorados na afirmação de que a aplicação de novas tecnologias ao processo judicial pode, efetivamente, levar a um modelo de sistema de justiça que seja mais transparente, acessível, ágil e eficiente. E, claro, como isso tudo pode ser realmente benéfico para a população, a maior destinatária desse sistema.

Ao final, espera-se poder comprovar que as ferramentas eletrônicas utilizadas trazem melhorias funcionais ao processo judicial, além de poder facilitar o acesso dos jurisdicionados à nova e-Justiça.

Em suma, esta obra pensa o uso da tecnologia como um potente motor que servirá para acelerar a modernização judiciária, principalmente se o uso das novas ferramentas digitais estiver focado no objetivo do sistema de justiça de vir a atingir uma duração realmente razoável do processo.

 

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