Introdução | Princípios de Direito Previdenciário

 

Em 1983, o seguro social completou um século de fecunda existência. Em 2002 completaram-se 139 anos de previdência social mundial. Desde as três leis de Otto Von Bismarck até os dias de hoje, são surpreendentes as transformações ocorridas nas técnicas de proteção social, assinaladamente as sucedidas nos últimos 30 anos.

Iniciada, incipientemente em 1919, com a obrigatoriedade do seguro de acidentes do trabalho (Decreto Legislativo n. 3.724/19), logo após, mediante a Lei Eloy Marcondes de Miranda Chaves, implantou-se a previdência social no Brasil (Decreto Legislativo n. 4.682, de 24 de janeiro de 1923).

O tempo passado, as vicissitudes enfrentadas e as experiências acumuladas, ultrapassada a fase econômica assinaladamente agrícola e atrelado o País a um processo de desenvolvimento econômico, encontra-se o Brasil em condições de situar-se no conceito mundial das nações como capaz de fixar seu destino histórico, político, econômico e social.

Quando se pensava destinada a economia vigente ao estágio agrícola mantida por largo espaço de tempo, diversificaram-se as exportações e, por intermédio da indústria automobilística, envolveu-se o País na pré-industrialização, quiçá industrialização ao final da década de 80, tornando-se produtor e exportador de muitos bens, especialmente minerais, soja, açúcar, frutas e carne de boi. Nossa previdência social sofreu o impacto de infiltrante inflação; ela erodiu suas reservas matemáticas, atingiu o sistema securitário calcado em monetarismo incapaz de suportar o primeiro ciclo de beneficiários que completaram os pressupostos necessários à fruição das principais prestações.

Aproximava-se célere a hora em que, outra vez, a exemplo do acontecido nas décadas de 30 e 60 do século passado, devem ser repensadas as bases técnicas da previdência social. Antes de consolidar-se o seguro social, abriu-se a perspectiva venturosa de iniciar o processo de passagem para a seguridade social — técnica socialmente mais justa —, empreendimento monumental que reclama prevalência total do social sobre o econômico, exatamente no momento em que o inverso é praticado. A revisão da Constituição Federal de 1988, iniciada com a Lei n. 9.032/95 e reencetada com a EC n. 20/98, foi o primeiro passo do gigante.

Acredita-se que a EC n. 103/19 deu uma respeitável contribuição para a fixação do equilíbrio atuarial e financeiro a ser atingido no futuro, vez que foram contempladas regras de transição aplicáveis a quem ingressou no sistema antes de 13.11.19. O modelo previdenciário brasileiro apresenta-se atuarialmente em equilíbrio instável. A razão não é apenas a insuficiência de recursos, renúncia do custeio ou concessão de prestações a pessoas social ou juridicamente sem direito. Mesmo caso se todos os devedores se pusessem em dia, assim permanecessem e o custo administrativo se reduzisse ao mínimo, o sistema continuaria entropicamente ameaçado pela técnica adotada, não adequada à clientela de beneficiários.

Fundamentalmente, a população ativa carreia recursos hoje e satisfaz necessidades da população inativa — representada por clientela protegida; esta, no seu tempo de contribuir, percebia remuneração relativamente menor — quando chegar sua vez de auferir as prestações, onerará de tal forma a despesa que desestabilizará o sistema. Parte da solução implica reexame da filosofia da proteção social vigente; o presente desequilíbrio populacional entre jovens e idosos sofrerá mutações ao largo do tempo, com consequências imprevisíveis.

Esse modelo deve ser adaptado às condições econômicas da atualidade, diferenciadas das décadas de 40 e 60 do século XX; ajustar-se às condições sociológicas do trabalhador; avaliar a crescente expectativa de vida, reconhecer a mudança havida na composição da clientela protegida; admitir o crescimento da assistência social nela compreendida a dispendiosa, mas socialmente indispensável, assistência médica; acomodar-se às flutuações do desemprego, subemprego e excesso de mão de obra não especializada, sem falar na baixa natalidade e envelhecimento populacional.

O planejamento administrativo tem de racionalizar e desburocratizar métodos de trabalho; rever o financiamento, modificado e ajustado na medida do fato gerador da obrigação fiscal; agilizar o sistema de arrecadação e fiscalização; acompanhar as técnicas cibernéticas, empregando a informática em larga escala.

Mas, sobretudo, o seguro social brasileiro tem de se impor como ciência jurídica e técnica científica, observando regras, técnicas e pesquisas à altura de suas enormes necessidades. O primeiro passo seria a reavaliação do plano de benefícios com a extinção de algumas prestações inconciliáveis (caso da aposentadoria por tempo de serviço) e o fortalecimento de outras (principalmente as por incapacidade), de sentido mais protetivo.

Nessa linha, correta é a Lei n. 8.870/94, quando pôs fim ao pecúlio e ao abono de permanência em serviço de 25%, e a EC n. 20/98, que praticamente extinguiu a aposentadoria proporcional por tempo de serviço.

Pertinentemente à técnica científica, impõe-se posicionar-se quanto à proteção social adotável: seguro social, seguro social tendente à seguridade social ou, o que parece ainda distante e conveniente, seguridade social. Depois, à base da reformulação, fixados os princípios técnicos e jurídicos (Subsídios para um  modelo de previdência social para o Brasil. São Paulo: LTr, 2008).

Os princípios representam a consciência jurídica do Direito. Podem ser concebidos pela mente do cientista social ou medrar no trato diário da aplicação da norma jurídica. Criados artificialmente, não devem descurar de sua parte as razões mais elevadas, diretrizes superiores, os valores eternos da civilização,  entre os quais avultam os postulados fundamentais da liberdade, o primado dos direitos e das dignidades humanas, o dogma da responsabilidade social e os preceitos de igualdade, equidade e legalidade.

São apresentados, um ou outro ligeiramente esmiuçado, os princípios do seguro social brasileiro. Não é estudo aprofundado, definitivo ou exaustivo quanto ao mérito; cuida-se apenas de identificá-los, em alguns casos nomeá-los, relacioná-los sistematicamente e trazê-los a público em condições de oferecer alguma utilidade à reformulação do modelo e como instrumento auxiliar na interpretação e na integração.

A apresentação inicia-se com as preliminares conectadas ao tema. É examinado o princípio fundamental da solidariedade social e do equilíbrio atuarial e econômico, os básicos e os técnicos; esses últimos, os que dizem respeito mais amiúde às práticas previdenciárias, divididos em substantivos e adjetivos.

São enfocados princípios administrativos, relativos à assistência social, aos acidentes do trabalho e aos trabalhadores migrantes. Abordam-se, igualmente, os princípios constitucionais, de direito procedimental e interpretativo. Como complemento, postulados de outras ciências jurídicas. Finalmente, com o objetivo de distingui-los dos princípios, descritos exemplos práticos de regras, técnicas e presunções previdenciárias, a par de rápidas referências às máximas latinas, natureza da prestação previdenciária e ligeiro desenvolvimento das razões previdenciárias.

Por sua oportunidade, em verdadeiro dicionário de institutos técnicos e jurídicos, comparecem questões de interesse prático permanentes: as distinções teóricas e práticas, encerrando-se o ensaio. Esta simples exposição, quase sem exame de mérito, corre os riscos inerentes à principiologia; não são poucos e a estes perigos devem ser somados a dificuldade decorrente de escassez bibliográfica e o fato de os postulados securitários se encontrarem em substanciação, buscando funções, limites, individualizando-se, fenômeno comum no estágio atual do Direito Previdenciário.

Identificá-los, diferenciá-los dos postulados do Direito, de modo geral, do Direito Social e do Direito do Trabalho, em particular, elevar certas praxes à categoria de princípios ou reduzi-los à condição de simples anexins ou prolóquios, é tarefa arriscada sob o ponto de vista didático, mas necessária.

De regra, os princípios são imprecisos. No seguro social, em face da não sedimentação da disciplina jurídica e à indefinição final dos seus reais objetivos, ampliam-se os óbices para quem tentar embrenhar-se no cipoal dos conceitos e institutos jurídicos envolvidos.

A principiologia, a rigor, é matéria de difícil trato e, por isso, poucos foram os que cuidaram especificamente dela. No nosso País, valendo registrar Nicolau Nazo (Os Princípios Gerais de Direito — 1923), Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito — 1924) e Rubens Limongi França (Princípios Gerais de Direito — 1966).

No seguro social, a contribuição doutrinária é ainda menor; raros sistematizaram a matéria, registrando-se as contribuições de Armando de Oliveira Assis e Marly Antonieta Cardone. A maioria dos jusprevidenciaristas menciona os princípios de passagem.

Aspecto digno de nota é o emprego da expressão “princípios”, tanto no singular quanto no plural. Em muitos casos, como acontece com Albino Pereira da Rosa (A Lei Orgânica da Previdência Social), Fernando de Ferrari (Principios de Seguridad Social) e João Camilo de Oliveira Torres (Princípios de Previdência Social), o vocábulo é tomado no sentido de primícia ou fundamento, caso específico de Aguinaldo M. Simões (Princípios de Segurança Social) e de Luigi de Litala (Diritto Delle Assicurazione Sociale), quando, sob o título de “princípios gerais”, desenvolvem a função social do Estado, as fontes, os sujeitos da relação, os recursos e as prestações.

Mário de La Cueva, sob o título “Los principios fundamentales del seguro social”, dá outro enfoque a eles e, não entendendo de desenvolver nenhum postulado fundamental ou técnico, divide o estudo em sete partes:

a) finalidades do seguro social;
b) extensão do seguro social;
c) riscos do seguro social;
d) ônus
da contribuição;

e) salários;
f) prestações; e
g) unidade dos regimes de seguro social (Derecho Mexicano del Trabajo, p. 197-206).

O mesmo se passa com Antonio Ferreira Cesarino Júnior, quando fala em princípios informativos do Direito Previdencial. Ele arrola os seguintes:

a) o expansionismo do Direito Previdencial;
b) o caráter tarifário; e
c) os aspectos fiscais do Direito Previdencial (Não Incidência do Fungats sobre o Pagamento de Horas Extraordinárias).

A verdadeira natureza dos princípios não foi determinada, principalmente porque eles cambiam de função, posição e características, conforme sua própria natureza. Na prática diuturna, a referência aos princípios como fontes formais de aplicação, integração ou interpretação do Direito nem sempre tem sido própria.

No Direito Social, um campo jurídico mutante por índole, a sua utilização deve ser cercada dos maiores cuidados, pois, colhidos praticamente em seu berço de nascimento, desenvolvem-se com grande rapidez, confundem os intérpretes e têm sua perenidade ameaçada pela dinâmica social do trabalho.

Armando de Oliveira Assis chama a atenção para esse fato, quando desenvolve as técnicas interpretativas das leis do seguro social: “Sempre haverá perigo de a lei ser aplicada e interpretada de maneira distante dos princípios a que serve, justamente, de vestimenta. Esse perigo aumenta, porém, em face da necessidade indeclinável de serem incluídos na legislação do seguro social preceitos provindos de outros setores do Direito” (Compêndio de Seguro Social, p. 152-153).

E prossegue: “Há mais, porém, sob a alegação de que se trata de matéria do domínio do Direito Social, os seus interpretadores são levados a invocar o sentido social, o objetivo social de tais leis, e à sombra de uma interpretação supostamente social, muitos disparates poderão ser cometidos em detrimento da coletividade”.

Referência ao emprego dos princípios na legislação previdenciária é rara. Quando comparece, é no sentido genérico, como acontece com a CLPS:

“Os orçamentos do INPS e do Fundo de Liquidez da Previdência Social, elaborados de acordo com as normas e princípios da Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964, serão aprovados pelo Ministro da Previdência e Assistência Social” (art. 191).

A lei referida não terá tantos princípios assim; o legislador está referindo-se aos princípios de Direito Administrativo. Outro exemplo, e aí se fixando expressamente na ideia clássica, é a Portaria MTPS n. 3.286/73:

“Estabelecer princípios, com caráter de prejulgados, ratificadores da jurisprudência ministerial predominante até esta data, relativamente à legislação citada” (art. 2º).

O exame dos prejulgados deixa entrever; na verdade, a portaria institui prejulgados calcados em princípios técnicos, e não ao contrário, como ela assevera. Marco André Ramos Oliveira opta por distinguir os princípios da seguridade social com os da previdência social. Os primeiros são:

a) igualdade;
b) legalidade; e
c) direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Como princípios específicos ele prefere os usuais, referidos no art. 194, I/VI, da Lei Maior, destacando a preexistência do custeio em relação ao benefício ou serviço, anterioridade nonagesimal, mitigada ou noventena, vinculação das receitas previdenciárias.

Os princípios da previdência social são a universalidade de participação nos planos previdenciários mediante contribuição; quantum da renda mensal dos benefícios substitutos do salário de contribuição ou do rendimento do trabalho não inferior ao salário mínimo; cálculo dos benefícios, considerados todos os salários de contribuição corrigidos monetariamente; preservação do valor real dos benefícios e previdência complementar facultativa, custeada por contribuição adicional (Manual de Direito Previdenciário. 6. ed. Niterói: Impetus, 2006, p. 28-37).

Fabio Zambitte Ibrahim elenca dez princípios:

1) Solidariedade;
2) Universalidade de cobertura e atendimento;
3) Uniformidade e equivalência de prestação entre as populações urbana e rural;
4) Seletividade e distributividade na prestação de benefícios e serviços;
5) Irredutibilidade do valor dos benefícios;
6) Equidade na forma de participação no custeio;
7) Diversidade da base de financiamento;
8) Caráter democrático e descentralizado da administração;
9) Tríplice forma de custeio; e
10) preexistência do custeio em relação aos benefícios ou serviços (Curso de Direito Previdenciário. 11. ed. Niterói: Impetus Editora, 2008, p. 54-67).

Os princípios a seguir examinados são os pertinentes ao seguro social, alguns dos quais, por sua universalidade, encontradiços na seguridade social e, muitos deles, oriundos do seguro privado, do mutualismo e da assistência pública.
Não esgotam a matéria nem encerram a espinhosa tarefa de apontá-los.

Alguns pertencem à cadeira jurídica e outros à ciência social; por isso são designados de princípios de Direito Previdenciário. Sua sistematização tem por escopo demonstrar a existência e a autonomia desse ramo jurídico. Nos anos 2020/2021, nosso país sofreu enormes perdas econômicas e uma solicitação inesperada de auxilio por incapacidade temporária em razão do novo coronavírus que chegou a diminuir 2 anos na expectativa de vida do brasileiro.

 

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