Psicanálise e Direito Atravessados pela Literatura
Prefácio
Corria o ano de 1987. Os corredores da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Maranhão fervilhavam com as notícias da Assembleia Nacional constituinte, instalada em Brasília naquele mês de fevereiro, que prometia criar uma ordem jurídica democrática que eliminasse os resquícios obscurantistas da finada ditadura.
Eram tempos animados. Para mim, aos dezenove anos, a vida universitária iniciada no ano anterior estava sendo fascinante. Após uma longa e feliz vida no colégio Marista, aquela polifonia da UFMA era uma novidade, sem a rigidez dos horários de outrora, mas com uma liberdade nunca antes vivenciada. Havia uma esperança juvenil de que o mundo realmente podia ser mudado.
Nosso círculo mais intenso de amigos na turma reunia Fróz, Ney Bello, Ana Teresa, Ronaldo Brito, Sergei Medeiros, Flávio Dino, Ana Lúcia, catarina Boucinhas, Marco Aurélio, Magno Moraes, Virgínia Neves e Patrícia Barros, criando laços fortes e duradouros. A nossa animação pelo início das aulas naquele ano era ainda mais justificada pelo fato de que seríamos alunos do Professor Agostinho Ramalho Marques Neto, que, à época, mesmo sendo um mestre bastante jovem, já era reconhecido nacionalmente pela genialidade de seu livro “A ciência do Direito”, lançado em 1982, fruto de seu trabalho para ingresso no Magistério Superior na Universidade Federal do Maranhão.
“A ciência do Direito” virou um clássico instantâneo e até hoje é leitura obrigatória nas melhores universidades brasileiras. O encantamento com as aulas de Teoria Geral do Estado do Professor Agostinho se justificou plenamente, à medida que os novos conteúdos avolumavam-se febrilmente nas mentes de seus alunos. Agostinho, seguindo a ideia de Roland Barthes, trouxe novos sabores e saberes ao Direito. Todo o meu interesse pela Teoria Política foi moldado por Agostinho naquele ano de 1987. Não à toa, ao final da cadeira restava uma saudade antecipada e quase melancólica pelo encerramento daquelas aulas. Porém, eu ainda não sabia à época que ali não seria o fim de um ciclo, mas, ao contrário, o início de uma grande jornada.
Não é exagero dizer que três professores da Academia de Direito do Bacanga moldaram toda a minha formação acadêmica: José Maria Ramos Martins, Nicolao Dino, e, claro, Agostinho Ramalho. Eu decidi que se em algum dia no futuro eu viesse a ser professor eu teria de honrar os três, a ponto de devolver aos alunos o mesmo conhecimento sóbrio, equilibrado, multidisciplinar, ético e sempre ministrado com extrema educação e gentileza, como era da essência daqueles três geniais professores maranhenses.
O futuro chegou mais rápido do que eu previa. Em 1992, um ano após minha formatura, eu me inscrevi no concurso público para a cadeira de Direito constitucional da Universidade Federal do Maranhão e tive a honra de ser sabatinado por uma banca na qual o Professor Agostinho Ramalho estava designado para examinar o tópico sobre constitucionalismo. A felicidade de minha aprovação no concurso resultaria em mais de três décadas dedicadas à Academia do Bacanga, o que se mostrou um acerto crucial em minha vida, ao permitir que eu pudesse me reunir aos meus grandes mentores no mesmo Departamento de Direito. Foi na UFMA, por intermédio de Agostinho, que eu conheci o genial mago argentino Luis Alberto Warat, este, como professor visitante, outro pensador que me ajudou a moldar a forma de enxergar o mundo, adicionando novos elementos pictóricos, poéticos e até lúdicos ao Direito.
A merecida aposentadoria de Agostinho veio acompanhada de uma febril produção intelectual, solidificando as bases para seus trabalhos sobre Psicanálise. Na companhia de seu grande amigo Jacinto Coutinho, Agostinho esteve à frente das Jornadas de Direito e Psicanálise, que durante muitos anos foram realizadas sob a coordenação do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Seu posterior ingresso na Academia Maranhense de Letras foi decorrência natural do reconhecimento público de sua obra ao longo de décadas de estudos e pesquisas.
Eu tive o privilégio de participar da organização, juntamente com queridos amigos, de dois projetos literários que reuniram textos de grande qualidade e que tiveram ótima receptividade, “Leve-me ao seu líder! Articulações entre Direito e cultura Pop” e “O Veredicto — Articulações entre Direito e cultura — Estudos em homenagem ao Desembargador Américo Bedê Freire”, em 2016 e 2022, respectivamente. As duas publicações mantiveram essa interseção entre Direito e cultura e, em ambas, Agostinho esteve presente com dois ensaios magistrais. Em 2019, a Universidade Federal do Maranhão publicou dois volumes da obra “Direitos Humanos e Sistema de Justiça: estudos em homenagem ao Professor Agostinho Ramalho Marques Neto”, reunindo ensaios de diversos pensadores de todo o Brasil. E, em 2021, a UFMA concedeu-lhe o honroso título de Professor Emérito.
A ideia de reunir em um volume completo os artigos que Agostinho publicou ao longo de tantos anos deve-se a uma conversa que eu tive com sua sobrinha Luciana Marques, durante uma reunião na casa do amigo Sobral Neto. Lá, eu e minha esposa Denise falávamos com Luciana sobre a necessidade de que toda a obra de Agostinho fosse publicada e amplamente divulgada. Eu conversei com Agostinho, que, de imediato, gostou e aprovou o projeto. E, generoso como sempre, também me convidou para elaborar o prefácio, algo que me emocionou muito, posto que a maior honraria para um ex-aluno e discípulo é a de poder prefaciar a obra de seu eterno mestre.
Em certo aspecto, o pensamento de Agostinho Ramalho aproxima-se muito das ideias centrais de François Ost, notadamente quando este, em sua obra “Contar a lei — as fontes do imaginário jurídico”, afirmou que existem tesouros na literatura que as ciências sociais fariam bem em analisar. E essa interseção entre Direito, Psicanálise e Literatura sempre foi feita com maestria por Agostinho Ramalho. Esta obra “Psicanálise e Direito atravessados pela Literatura” reúne a essência das Jornadas de Direito e Psicanálise, nas quais todos os onze textos deste livro foram apresentados por Agostinho Ramalho e esparsamente publicados.
Agostinho selecionou os artigos que foram organizados seguindo a ordem cronológica de sua apresentação: “O Estrangeiro: a Justiça Absurda”, “O Processo Kafkiano”, “A Dívida e a Libra de carne (O Mercador de Veneza)”, “Fundamentalismo e Guerra”, “Sobre ‘O Senhor das Moscas’, de William Golding”, “Era preciso manter a ordem”, “O meu Sertão: variações em torno do Julgamento de Zé Bebelo em ‘Grande Sertão: Veredas’, de João Guimarães Rosa”, “Aspectos da lógica do julgamento no livro ‘Desonra’, de J. M. Coetzee”, “A Lei (transgressora) de Antígona”, “E agora, Alex, há Lex?”, e “A cegueira Plural: breves comentários ao ‘Ensaio sobre a cegueira’, de José Saramago”.
O artigo “O Estrangeiro: a Justiça Absurda” decorreu de um curso ministrado por Agostinho na Universidade Federal do Maranhão, em dezembro de 1999, intitulado Quando se está julgando algo, o que é mesmo que está sendo julgado? — Uma leitura do romance “O Estrangeiro”, de Albert Camus.
Nele, Agostinho analisou o romance O Estrangeiro, de Albert camus, a partir de uma dimensão de “absurdo”, segundo ele, pertencente à dinâmica do processo penal e talvez à própria lógica interna do direito penal.
“O Processo Kafkiano” é o trabalho resultante da conferência proferida nas III Jornadas de Direito e Psicanálise, da UFPR, sob o tema “Interseção entre Direito e Psicanálise: uma leitura a partir de O Processo, de Franz Kafka”, promovidas pelo Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós--Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, em junho de 2006. Nele, Agostinho analisou O Processo “como uma paródia de um processo penal ‘normal’, como uma espécie de simulacro do assim chamado sistema inquisitório”, chegando à mesma conclusão de Elias Canetti sobre a obra de Kafka, quando afirmou “que o medo e a indiferença são os sentimentos principais que lhe inspiram outras pessoas”, mas que negar o devido processo legal, essa conquista da civilização, é recair na barbárie.
Em “A Dívida e a Libra de carne”, Agostinho discorreu sobre certas passagens de “O Mercador de Veneza”, a famosa obra de William Shakespeare. Esse tema foi objeto da palestra intitulada “De William Shakespeare em ‘O Mercador de Veneza’ à Interseção Direito-Psicanálise”, proferida por ocasião das IV Jornadas de Direito e Psicanálise, promovidas pelo Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, em Curitiba, em junho de 2007.
O artigo “Fundamentalismo e Guerra” foi apresentado inicialmente por ocasião das V Jornadas de Direito e Psicanálise, em Curitiba, em seis de junho de 2008, sob o tema Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir de “O Caçador de Pipas” de Khaled Hosseini. Aqui, Agostinho examinou alguns pressupostos do fundamentalismo, do discurso fundamentalista e de algumas de suas consequências, sintetizando um debate ainda tão presente na atualidade, em um mundo tão fragmentado e dividido. Bravo!
‘O Senhor das Moscas’, de William Golding, foi objeto de estudo das VII Jornadas de Direito e Psicanálise, em Curitiba, em onze de junho de 2010, sob o título Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir de “O Senhor das Moscas”, de William Golding, na UFPR. Agostinho analisou o embate que é objeto da visceral obra ‘O Senhor das Moscas’, de William Golding, por meio de uma linguagem hobbesiana, entre o estado de natureza e o estado civil; ou, o que Freud chama de “’forças pulsionais’ e de ‘aquisições da civilização’, regidas, respectivamente, pelas lógicas do processo primário e do processo secundário”, segundo Agostinho.
“Era preciso manter a ordem” foi apresentado durante as VIII Jornadas de Direito e Psicanálise, sob o tema Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir de “O Leitor”, de Bernhard Schlink, em Curitiba, em 2011. Agostinho tece aqui reflexões profundas sobre o imperativo de manter a ordem a qualquer custo — e as consequências daí advindas. A base inicial é o livro Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, permitindo que Agostinho traçasse depois um paralelo com a tragédia de outra Hanna, a personagem central de “O Leitor”, livro de Bernhard Schlink. Absolutamente bem fundamentado, “Era preciso manter a ordem” leva a uma profunda reflexão sobre os perigos que o nazismo e seus aparentados regimes fascistóides representam, principalmente porque ainda teimam em existir na atualidade.
“O meu Sertão: variações em torno do Julgamento de Zé Bebelo em ‘Grande Sertão: Veredas’, de João Guimarães Rosa, foi apresentado nas IX Jornadas de Direito e Psicanálise, em Curitiba, em 18 de maio de 2012.
É nesse belíssimo e lírico artigo que conhecemos os ecos da infância de Agostinho na cidade de Guimarães, como parte essencial de sua formidável obra. Lá no fundo de todos os seus escritos escuta-se o som do silêncio da cidade histórica, o ruído agudo da brisa da Baía do Cumã e a intermitente chuva equinocial. Agostinho sabe ouvir e sabe expor suas impressões sobre o imaginário e a sabedoria popular. Aqui, na Guimarães de sua infância, as páginas de Grande Sertão: Veredas encontram a “Macondo” de Gabriel García Márquez. Genial!
“Aspectos da lógica do julgamento no livro ‘Desonra”, de J. M. Coetzee” é o artigo resultante das XI Jornadas de Direito e Psicanálise, sob o tema Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir de “Desonra”, de J. M. Coetzee, em Curitiba, em 29 de maio de 2014. Denso, coerente e impactante, Agostinho debruça-se aqui sobre o livro “Desonra” do escritor sul-africano J. M. Coetzee, vencedor do Nobel de Literatura de 2003, fazendo uma análise sobre temas complexos como o Apartheid, o racismo, as relações de gênero, a situação da mulher e a antítese entre censura e o direito à expressão.
“A Lei (transgressora) de Antígona” foi inicialmente apresentado por ocasião das X Jornadas de Direito e Psicanálise, sob o tema Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir da “Antígona”, de Sófocles, em Curitiba, em maio de 2013. O artigo resultante foi publicado na obra “O Veredicto — Articulações entre Direito e cultura”, de 2022. Agostinho debate a clássica peça de Sófocles em seu contexto trágico — e diante da questão da fundamentação do ato de Antígona indaga: “que leis são essas que Antígona invoca e em cujo nome e com base nas quais (pelo menos aparentemente) age? Ou, mais precisamente, o que fundamenta o seu ato?”. Agostinho afirma: “A Lei de Antígona é fundadora, não por apresentar um novo campo de normas e princípios universais aos quais se deva aderir, mas por representar uma nova posição de sujeito a partir da qual (e somente a partir da qual) algo como o campo da ética se torna possível”.
“E agora, Alex, há Lex?”. O título provocativo do artigo é dirigido ao drama “Laranja Mecânica”, obra seminal de William Burgess, publicada em 1962. Inicialmente, foi objeto de uma palestra proferida por ocasião das XII Jornadas de Direito e Psicanálise, sob o tema Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir de “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess, em Curitiba, em 29 de maio de 2015. Stanley Kubrick converteu “Laranja Mecânica” em filme em 1971, tornando-se um dos maiores sucessos da história do cinema. Este artigo “E agora, Alex, há Lex?” foi publicado no aclamado livro “Leve-me ao seu líder! Articulações entre Direito e cultura Pop”, de 2016.
Aqui, Agostinho discute com maestria “a violência sem remissão que caracteriza o livro”, o conflito entre gangues, o controle dos meios de repressão pelo Estado.
“A cegueira Plural: breves comentários ao ‘Ensaio sobre a cegueira’, de José Saramago” foi apresentado durante as XIII Jornadas de Direito e Psicanálise, sob o tema Direito e Psicanálise: Interseções e Interlocuções a partir de “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago, em Curitiba, em maio de 2016. Aqui, a análise do romance Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago, Nobel de Literatura de 1998, serve como metáfora para Agostinho examinar duas peculiares modalidades de “cegueira” que se alastram na sociedade brasileira contemporânea: a cegueira jurídico-política e a cegueira social, a primeira diante do “afrouxamento” de normas legais e constitucionais, enquanto a segunda está relacionada com a redução à condição de “invisibilidade” de segmentos sociais marginalizados e excluídos.
“Psicanálise e Direito atravessados pela Literatura” contém uma elegância harmônica que está presente em todos os onze artigos selecionados, uma verdadeira seleção, esse escrete dourado que forma um amálgama singularmente denso. Este novo livro de Agostinho já nasce como um clássico e está destinado ao tempo. Somos todos privilegiados em poder ler sua obra.
“Psicanálise e Direito atravessados pela Literatura” é um verdadeiro manifesto, que produz uma antagônica sonoridade, ora silenciosa, ora estridente, que espeta a alma. Sua leitura é absolutamente necessária nesses confusos tempos digitais, pois contém uma atualidade provocativa; e sua leitura deve ser degustada lentamente, para que suas reflexões humanistas e inquietas atinjam todos os recantos da mente e do coração — e lá permaneçam como residentes.
Ao Mestre Agostinho, a minha eterna devoção!
James Magno A. Farias
Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Doutor em ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco — UFPE, Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Federal do Maranhão, mesma universidade pela qual é Bacharel em Direito. É Professor Associado do Departamento de Direito da UFMA, Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região e Escritor.
Conheça a obra
• A obra
• Sumário
• Prefácio
• Sobre o autor
• Folheie