Ações Afirmativas
Introdução
Devo começar dizendo algo que me parece importante, considerando o tema que pretendo discutir: este livro não pretende ser uma defesa sem fundamentação de algo que considero importante, que são as medidas ou programas de ação afirmativa e, claro, muito menos o seu contrário, a condenação — normalmente por motivos que não se sustentam, tanto no plano teórico como no plano prático — a esses programas.
Por que essa observação inicial? Por ser incorreto esperar deste estudo posições extremadas e que, normalmente, não consideram ser necessário sustentar, a partir de concepção determinada, medidas que aparentam ter índole excepcional.
O que me proponho, neste texto, é discutir a ação afirmativa como ação que se justifica a partir de uma concepção determinada de justiça, a justiça distributiva, com base em modelo específico, e que toma por base um valor que me afigura indissociável desta concepção de justiça: a igualdade.
Minha intenção é demonstrar que as medidas de ação afirmativa não são ações isoladas, ou que se justificam por si, mas devem, observadas exigências próprias, contribuir para uma distribuição mais igualitária dos bens existentes, bem como possibilitar a utilização mais igualitária desses bens.
A respeito da igualdade, adianto também que não vou travar a discussão a partir de uma concepção abstrata, mas sim focando como será visto adiante com Amartya Sen, em espaço determinado, que é o dos bens e oportunidades. Para isso, vou me servir da concepção de igualdade que penso ser a mais compatível com esses objetivos, na forma como a compreendo, e que está expressa na teoria da igualdade de recursos de Ronald Dworkin, em obra que, no Brasil, foi publicada sob o título A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade.
Esse é o meu marco teórico para este estudo, pela proximidade do autor com o tema. De Dworkin, creio ser possível aproveitar, também, escritos que tratam especificamente das ações afirmativas e que são encontrados em obras variadas, uma delas, a mencionada acima.
Ainda como referência, pretendo usar ideias expostas, como adiantei acima, por outro autor contemporâneo, Amartya Sen, apresentadas, principalmente, no livro denominado Desigualdade reexaminada, pois creio que elas podem explicar, ao menos em parte, o que aparenta ser uma lacuna no pensamento de Dworkin a respeito da igualdade, e que, como será visto, decorre não só de uma ausência, mas também de uma explicação que não é completa o suficiente e de uma opção que, penso, pode ser melhorada.
Pretendo, ainda, do mesmo modo dito antes, que a discussão seja feita a partir de uma ideia específica de justiça, a justiça distributiva, e, por essa razão, é natural discutir o pensamento do filósofo político que revolucionou essa concepção, na segunda metade do século passado: John Rawls, de quem sou declaradamente seguidor. Para isso, usarei especialmente o texto em que esse autor apresenta a teoria da justiça que denominou de justiça como equidade.
Feitas estas considerações, não posso deixar de afirmar que, para o bem e para o mal, a defesa que pretendo fazer das medidas de ação afirmativa está baseada, principalmente, em autores que defendem o chamado liberalismo de princípios, ou liberalismo igualitário, como agora é mais conhecido.
É que, não obstante eu possa, em alguns momentos, considerar que algumas questões a respeito das ações afirmativas devam ser trabalhadas com nuanças distintas do que é exposto — em destaque no meu estudo — na teoria de Dworkin, que, por exemplo, por ser integrante e difusor da tradição norte-americana, não empresta maior importância aos interesses coletivos, aqui entendidos como interesses de que é titular um grupo deter- minado, é fato que considero que é nessa corrente de pensamento, na Filosofia Política, que está a concepção de distribuição de recursos que melhor atende ao ideal de igualdade.
Essas questões, a propósito, irão compor os dois primeiros capítulos deste livro, sendo que, no primeiro, pretendo discutir alguns pressupostos que considero necessários para a temática debatida, e, no segundo, tenciono — depois de discutir, por razões que vou indicar, o pensamento de Rawls — apresentar a teoria capaz de justificar o uso de programas de ação afirmativa, como uma das estratégias possíveis para alcançar uma igualdade de recursos que leve em consideração a diversidade existente entre as pessoas que compõem determinada sociedade.
Nestes capítulos, ainda, para facilitar a compreensão não só das questões tratadas, mas as ideias dos autores acima indicados, pretendo utilizar como referências auxiliares, além de outros, mais quatro autores: Will Kymlicka,
Roberto Gargarella, Samuel Fleischacker e Álvaro de Vita, os quais têm se dedicado ao estudo da justiça distributiva e do liberalismo de princípios, podendo acrescentar bastante na discussão que quero apresentar.
Já no terceiro capítulo tratarei de questões gerais relativas às ações afirmativas, com destaque para o aspecto relativo às ações afirmativas que menos têm recebido atenção, penso, no Brasil, quer da doutrina, quer das instituições sociais, que são os critérios que validam a adoção de programas dessa natureza, embora parte da discussão inicie no capítulo anterior.
Dworkin é, ainda, minha referência básica, usando agora textos referidos em nota mais acima, em que o filósofo discute de forma específica as ações afirmativas nas universidades norte-americanas, na maior parte e, em menor grau, no ambiente de trabalho. Utilizarei, ainda, especialmente no item 2, a doutrina de Joaquim Barbosa Gomes.
Adiante, no quarto capítulo, pretendo discutir alguns programas de ação afirmativa previstos, no Brasil, das mais variadas formas: por lei, por resolução, e até por meio da celebração de termo de ajuste de conduta perante o Ministério Público do Trabalho. Aqui, o objetivo será verificar qual o impacto desses programas na melhor distribuição dos recursos entre os membros da sociedade brasileira, como estes foram instituídos, e se preenchem os critérios que vou defender que devem existir para a validade de programas dessa natureza.
Por fim, a partir da 2ª edição acrescentei o 5º capítulo para discutir dois fatos posteriores à publicação original deste livro. Primeiro, o julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF n. 186/DF, em que se discutiu programa específico de ações afirmativas, no caso instituído pela Universidade de Brasília. Depois, a Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que “Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências” e que impõe, disciplinando, a criação de programas de ações afirmativas em instituições de ensino federais, bem como o Decreto n. 7.824, de 11 de outubro de 2012, que regulamentou a referida lei. Por outro lado, desde a 3ª edição acrescentei uma reflexão final, aproveitando a oportunidade proporcionada por projeto de lei que pretendia instituir reserva de vagas para negros no serviço público federal, agora transformado na Lei n. 12.990, de 9 de junho de 2014.
Vou fazer essas discussões em capítulos distintos não somente porque são questões mais recentes, embora, aparentemente, o natural fosse incorporá-las, nos itens próprios, nos capítulos 3 e 4, mas também porque representam momentos importantes para a história das ações afirmativas no Brasil, sendo mais adequado, penso, refletir a respeito deles em apartado.
Encerrando esta introdução, quero, assim como comecei, fazer uma (nova) ressalva: a opção pelo uso das ideias de Dworkin reflete minha concepção de que o autor possui, para o assunto em discussão, um pensamento completo, ou quase, e que é capaz de criar as condições necessárias para que se possam apresentar ideias a respeito de programas que considero importantes para alcançar um fim maior, que é o de ter uma distribuição mais igualitária do que é fundamental na vida em sociedade. Dworkin, dessa forma, como o leio, fique claro, é a base para a sustentação das ideias lançadas, e, como será visto, o fio condutor do texto.
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