Teoria da Jurisdição Internacional

Apresentação

A obra de Raimundo Itamar Lemos Fernandes Júnior que ora se oferece ao público brasileiro baseia-se na tese de doutoramento que o Autor defendeu em maio de 2020 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e da qual tive ocasião de ser orientador.

O seu objecto é constituído pelo relevo do exercício regular da actividade judicativa para a solução de controvérsias na sociedade internacional, nela incluídos os casos em que esse exercício não é levado a cabo por entidades integradas numa organização investida de poder público, mas por privados a quem é reconhecida tal capacidade (como ocorre na arbitragem). Ciente da importância que há-de ser reconhecida a esta função nas sociedades internas, o Autor procura determinar aquela que lhe cabe na complexa sociedade internacional dos nossos dias, levando para o efeito a cabo uma extensa indagação em que procura situar o aparecimento e a evolução da jurisdição na vida internacional, nas suas diversas formas. E, mais do que isso, tentando surpreender em que medida tal função se revela essencial para a construção dessa sociedade como realidade unitária, o que a seu ver confirmaria a importância por ela também assumida nos mais diversos contextos de agregação social.

É, na verdade, a relevância que o Autor reconhece ao momento jurisdicional que o leva a considerar, num primeiro capítulo, o lugar da jurisdição nas fórmulas jurídico-políticas anteriores ao Estado, das sociedades primitivas às diversas civilizações que foram marcando o evoluir da organização social, salientando a propósito o que de específico existiu nas formas pelas quais aquela se manifestou, na Mesopotâmia como no Egipto, no mundo hebraico como nas realidades colectivas mais aperfeiçoadas onde, posteriormente, quer a cultura grega quer a organização romana vieram a desenvolver-se. O trajecto a este respeito percorrido fá-lo sublinhar os aspectos particulares que esta função foi revestindo ao longo do tempo, permitindo-lhe atentar na sedimentação progressiva de algumas características importantes. O que ocorre ao longo de um percurso que termina com a consideração do papel e da estruturação da função jurisdicional na sociedade medieval em que a fragmentação do poder levou a que ela apresentasse características específicas.

Após esta abordagem em que o pendor histórico se manifesta muito claramente, o Autor trata num segundo capítulo a importância da jurisdição no quadro do Estado, o seu lugar na Constituição e, em particular, na regulação da economia. Analisa para o efeito o surgimento do que classifica como Estado Nacional, realçando os diversos elementos com relevância para o seu aparecimento, mas detendo-se em especial na jurisdição, que em diversos quadrantes reputa ter sido essencial para a afirmação da respectiva unidade. Dá depois especial relevo à  afirmação da jurisdição no Estado Constitucional — que se identifica como um Estado de separação de poderes, analisando a doutrina, essencial a este respeito, de Locke e Montesquieu —, e salienta quer a necessidade da sua independência quer o seu papel na formação e consolidação desta forma de Estado. Finalmente, dedica ainda uma particular atenção ao Estado Regulador, procedendo à respectiva caracterização e sublinhando algumas das especificidades que a afirmação desta nova realidade política trouxe tanto no plano da separação dos poderes como no da efectivação da função jurisdicional.
Depois deste tratamento da jurisdição no quadro estadual, o Autor considera então o seu lugar na estruturação da sociedade internacional, dedicando-lhe o capítulo III da sua obra.

Procede uma vez mais a uma análise histórica, atentando nas relações entre os diversos poderes cuja afirmação tem lugar no seio daquela sociedade, e detendo-se em particular nas características apresentadas pela função jurisdicional ao longo do desenvolvimento da sociedade internacional. Salienta, a propósito, determinados aspectos do acesso dos particulares à jurisdição consular e a outras instâncias que se revestiram de alguma importância na sociedade internacional, para se referir em seguida à estruturação que a jurisdição assumiu ao ser exercida por instâncias dotadas de carácter permanente, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, e à importância alcançada pela cooperação das jurisdições nacionais, tanto em geral como no caso específico da União Europeia.

No capítulo IV o Autor aborda a importância da jurisdição em domínios específicos da estruturação da sociedade internacional, desde o seu lugar na garantia do estabelecimento do comércio jurídico entre privados (com a lex mercatoria) à resolução de conflitos no interior de organizações adrede criadas (como a Organização Mundial do Comércio) e à garantia de certas liberdades também através de órgãos jurisdicionais que assumiram essa função. Menciona a este propósito os casos do Tribunal Internacional do Direito do Mar (para a liberdade dos mares), das instâncias da Organização Internacional do Trabalho (para a liberdade de trabalhar), e dos tribunais regionais europeu e americano como de estruturas da ONU (para a protecção dos direitos humanos), aludindo ainda à protecção, também neste plano, do direito do ambiente. Enfim, dedica também algumas considerações à regulação internacional, salientando a importância da que é exercida por entidades privadas, e considerando também aqui as suas relações com a jurisdição.

Reconhecendo a especial relevância dos fenómenos de integração económica e política, o Autor trata depois, no capítulo V, a importância que a jurisdição assume na formação das estruturas supranacionais de poder. Insere este último fenómeno no quadro das experiências de integração regional, oferecendo-nos a propósito uma breve referência à União Europeia e sobretudo ao seu Tribunal de Justiça. Salienta o papel que lhe foi reservado e que ele viria a assumir naquela organização, sem esquecer no entanto o lugar sistemicamente aí reconhecido às jurisdições nacionais na aplicação do direito comunitário (e, depois, da União) e os problemas do acesso dos particulares às instâncias jurisdicionais criadas pelos tratados que instituíram estas organizações, para concluir com uma reflexão sobre a importância da jurisdição no processo de integração. E depois, no universo americano, ocupa-se do Mercosul e da evolução que o processo inicial de solução de controvérsias aí sofreu até à criação do actual Tribunal Permanente de Revisão, da Comunidade Andina, que cedo foi dotada de um Tribunal de Justiça segundo o modelo das Comunidades Europeias, e do Sistema de Integração Centro-Americano (SICA), em que avulta igualmente uma Corte Centro-Americana de Justiça, não esquecendo também, ainda que tratando-se agora apenas de um acordo de livre-comércio, de mencionar o sistema do tratado
Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) e o Dispute Settlement Resolution nele estabelecido, para referir a importância que em todos estes casos a jurisdição teve nos processos de integração.

Com este desenvolvimento, o Autor chega como que naturalmente ao capítulo VI do seu trabalho, que dedica ao papel da jurisdição na criação do que designa como “unidade jurídico-política internacional”. De algum modo sistematizando reflexões anteriores, procura esboçar um quadro dos contributos da jurisdição para a formação de um sistema jurídico-político global, salientando os domínios em que a jurisdição internacional se tem vindo a afirmar (comércio internacional e cooperação judiciária), e referindo ainda quer as experiências de supranacionalidade, quer os exemplos mais típicos de criação de jurisdições universais com competências gerais ou específicas, quer os casos de regulação de certas actividades. Na perspectiva da construção da referida unidade, salienta que ela se pode tentar através da criação de uma ordem jurídica, recordando a matriz kelseniana, mas refere também que aquela é susceptível de uma concepção plural, na esteira de Bobbio, entre outros, para dar um especial destaque à construção funcionalista de Luhmann e à sua visão do Direito Internacional, bem como à concepção de um Direito Global, cara a Teubner, que lhe dá ensejo para alguns desenvolvimentos sobre a noção e a importância da soft law. Enfim, a influência dos contributos destes últimos autores leva-o a apontar para uma construção daquela unidade a partir de um sistema em que as diferentes jurisdições se encontrariam em rede, sem recorrer ao estabelecimento de relações hierárquicas, mas favorecendo as relações de mútua colaboração entre elas.

Dotada de um relevante conjunto de referências bibliográficas e jurisprudenciais assim como de um resumo das principais conclusões do presente trabalho, a obra dá conta da multiplicidade das preocupações do seu Autor, assim como da dimensão da indagação que a este respeito ele entendeu levar a cabo. É, pois, sob este prisma que cremos que deve ser analisada, num estádio em que a maturação da sociedade internacional torna algo prematura, no nosso entender, a formulação de uma teoria da jurisdição exercida no seu seio, a sua contribuição para uma melhor compreensão do relevo, esse sim inescapável, já assume, na actualidade, pela jurisdição internacional, como do papel que indubitavelmente lhe cabe na vertebração, que se antevê cada vez mais intensa, daquela sociedade.

 

Coimbra, junho de 2022.

Rui Manuel Moura Ramos

Professor Catedrático da Universidade de Coimbra (Portugal), em que tem regido disciplinas de Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público. Foi directeur de cours na Academia de Direito internacional da Haia (1984). Foi professor convidado na Universidade de Paris II (1994-1995) e no Institut Universitaire International no Luxemburgo (1999-2002). Foi delegado do Governo Português junto à Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (CNUDCI) e ao Comitê sobre a Nacionalidade do Conselho da Europa. É membro do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT). Foi Juiz no Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (1995-2003) e do Tribunal Constitucional Português (2003-2012), do qual foi presidente (2007-2012). Integra o Board of Advisors do The Columbia Journal of European Law, e é redator da Revista de Legislação e de Jurisprudência e membro do Conselho de Redação de Temas de Integração.

 

 

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