Terceirização Externa: A responsabilidade da cadeia produtiva pelo direito fundamental ao trabalho digno

Prefácio

Aprendi com Paulo Freire que espaços de orientação abertos ao pensar, à liberdade de expressão, à construção de afetos e à exaltação da criatividade refletem a natureza constitutiva da educação enquanto uma prática formadora fundada numa perspectiva essencialmente humana(1).

A prática educativo-criativa anuncia, assim, a experiência do ensinar não como um ato de mera transferência de conhecimento ou do desempenho de destrezas, mas como um espaço de criação de possibilidades para a sua produção ou (re)construção.

E este movimento só se efetiva se a relação entre quem ensina e quem aprende for recíproca, numa dinâmica de engrandecimento simultâneo de formação e ressignificação(2). Receber Helder Santos Amorim, na condição de doutorando, após sua aprovação exitosa no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB), foi uma honra. Primeiro, porque tivemos a oportunidade de retomar a parceria acadêmica inaugurada, em 2014, quando publicamos o livro dual “Os Limites Constitucionais da Terceirização”, pela LTr Editora(3).

Segundo, porque, no doutorado, Helder Amorim recuperou a pesquisa sobre a terceirização trabalhista, desta vez com ênfase na terceirização externa, tema de nosso interesse comum a que direcionamos os estudos há um bom tempo. E, terceiro, pelo privilégio de estar ao lado de um pesquisador com formação jurídica sólida, coerente, respeitoso e com uma visão de Direito do Trabalho rigorosamente fundada na matriz filosófica humanística da Constituição Federal de 1988.

Por essas razões, o processo de orientação do qual resultou a tese de doutorado, ora publicada como livro pela Editora LTr, fluiu num movimento crescente e recíproco de construção de saberes, pelo qual sou sinceramente grata.

Estudar a terceirização não é tarefa fácil. Trata-se de tema altamente complexo, caracterizado como um dos mais “agudos conflitos de classe judicializados na atualidade brasileira”(4). Ainda assim, Helder Amorim decidiu enfrentar o desafio, e o fez em terreno arenoso, o campo da terceirização externa ou externalização, dinâmica interempresarial que se espraiou, “nas últimas décadas do século XX, por todos os setores da atividade econômica, tornando-se o principal instrumento da organização produtiva flexível utilizado pelas grandes corporações dos países centrais para descentralizar e fragmentar geograficamente suas cadeias produtivas, ao redor do mundo”.

A partir de extensa pesquisa multidisciplinar, confirma que as empresas fornecedoras terceirizadas de grandes cadeias produtivas, em diversos setores econômicos, tanto no plano internacional como no doméstico, tendem a precarizar as condições de trabalho, provocando graves violações aos direitos humanos trabalhistas, com destaque para o uso reiterado de “trabalho informal, sem garantias sociais mínimas, jornadas exaustivas e condições aviltantes de remuneração e descanso, problemas relacionados à discriminação, à saúde e à segurança, ao cerceio da liberdade sindical, ao uso do trabalho infantil e do trabalho escravo”.

Após minucioso diagnóstico, Helder Amorim passa à fase propositiva do texto, momento em que articula alternativas e propõe soluções jurídicas face aos impactos provocados pela terceirização externa, enquanto mecanismo de superexploração de mão de obra nas cadeias produtivas.

No plano teórico, a tese foi elaborada com suporte no conceito de trabalho decente, construído e promovido pela OIT “como importante paradigma internacional mínimo cogente de direitos humanos socio-trabalhistas” e na teoria do direito fundamental ao trabalho digno, “noção constitucional resultante do nexo lógico entre o direito fundamental ao trabalho, os direitos decorrentes do trabalho e a dignidade da pessoa humana, fundamento nuclear do Estado Democrático de Direito”, principal eixo teórico das pesquisas em Direito Constitucional do Trabalho desenvolvidas sob minha orientação na Faculdade de Direito da UnB.

Partindo do cenário internacional, Helder Amorim discorre amplamente sobre os padrões regulatórios mínimos globais de respeito à pessoa humana, em especial no plano das relações entre empresas e direitos humanos, com ênfase para a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, de 1998, os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, de 2011, e as soluções propostas pela OIT, em sua 105ª Conferência Internacional, para o problema do trabalho precário nas cadeias globais de mercadorias, relacionadas aos mecanismos de governança pública e privada das cadeias produtivas.

Em seguida, volta-se para a análise da tutela pública em âmbito nacional e se lança ao desafio inédito de formular as bases de uma “teoria da responsabilidade dos agentes econômicos condutores das cadeias produtivas e, em particular, da empresa-líder, por afronta aos direitos humanos socio-trabalhistas dos trabalhadores terceirizados”, oferecendo soluções de responsabilidade preventiva e reparatória. E o faz com respaldo na sólida estrutura normativa internacional, constitucional e infraconstitucional em torno da matéria, no âmbito da jurisdição brasileira.

Assim propõe uma “estrutura tridimensional das responsabilidades em cadeia pelo direito fundamental ao trabalho digno, nas cadeias produtivas empresariais descentralizadas”, com as seguintes frentes de reparação por ele sistematizadas: a “responsabilidade trabalhista da empresa empregadora-fornecedora”; a “responsabilidade subsidiária da empresa contratante da fornecedora, que consiste em espécie de garantia de cumprimento dos direitos dos trabalhadores terceirizados”; e a “ responsabilidade civil-trabalhista objetiva direta da empresa-líder pela observância dos direitos humanos socio-trabalhistas em toda a cadeia produtiva, seja essa empresa a contratante direta ou indireta da empresa fornecedora-empregadora”.

Ao final do percurso da pesquisa, ainda nos brinda com o “estudo da tutela coletiva judicial e extrajudicial do direito fundamental ao trabalho digno na cadeia produtiva empresarial descentralizada à luz de fundamentos centrais e complementares utilizados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em sua atuação judicial voltada à responsabilização de empresas contratantes de terceirização externa”.

Este seguramente é um dos pontos altos da obra, momento em que o autor-pesquisador reconhece o plano teórico e o projeta em termos práticos, ressignificando o conhecimento e se alongando para a produção de soluções jurídicas abrangentes e adequadas à realidade da terceirização externa nas cadeias produtivas, a partir da sua comprometida atuação profissional enquanto Procurador Regional do Trabalho.

Enfim, os leitores terão acesso a um texto denso e sólido, que esgota o tratamento técnico referente à responsabilidade jurídica nas cadeias produtivas empresariais descentralizadas, mas que, sobretudo, impulsiona reflexões profundas e interdisciplinares sobre a necessária preservação e defesa dos direitos humanos trabalhistas.

 

Brasília, fevereiro de 2023.

Gabriela Neves Delgado

✔ Professora Associada de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB;
✔ Pesquisadora Coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq);
✔ Pós- Doutorado em Desigualdades Globais e Justiça Social: diálogos sul e norte pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e seu Colégio Latino Americano de Estudos Mundiais (FLACSO);
✔ Pós-Doutorado em Sociologia do Trabalho pelo Instituto de Filosofia e Ciências ✔ Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP);
✔ Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);
✔ Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas);
✔ Advogada.

 

(1) FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021. pp.9, 14, 32.
(2)
Idem. p. 23.
(3) DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder Santos.
Os Limites Constitucionais da Terceirização. São Paulo: LTr, 2014.
(4) DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder Santos.
Os Limites Constitucionais da Terceirização. São Paulo: LTr, 2014.

 

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