A Reconfiguração dos Modos de Trabalhar

Prefácio

Se a era digital em que vivemos já vinha interpelando fortemente o Direito do Trabalho, pelas mudanças registradas na forma de todos nós vivermos, comunicarmos e trabalharmos, pelo predomínio dos serviços e do trabalho intelectual sobre a indústria e o trabalho manual, pelas transformações sentidas, a todos os níveis, na estrutura e funcionamento das empresas, pode dizer-se que a pandemia que atravessamos nos últimos anos acelerou drasticamente todos esses processos, lançando desafios de grande magnitude ao Direito do Trabalho.

Sim, o teletrabalho já existia antes da pandemia, já era, inclusive, alvo de expressa regulação jurídica por parte das leis do trabalho, tanto no Brasil como em Portugal. Mas, convenhamos, era um fenômeno marginal. Com a pandemia e por força do confinamento ditado pela necessidade de combater a difusão do vírus, o teletrabalho, trabalho à distância, remoto, amiúde prestado a partir do domicílio do trabalhador, assumiu proporções nunca vistas. E tornou-se, como então se disse, no “novo normal”. O teletrabalho chegou e parece que chegou para ficar, muito para além da pandemia, segundo os dados estatísticos disponíveis. O trabalho, agora, entra-nos em casa, ou, como alguém sugeriu, nós passamos a viver no emprego. E, parece, sobretudo entre os jovens, já existem muitos candidatos que só aceitam trabalhar se o fizerem, total ou parcialmente, à distância…

Um novo mundo, este, em que os problemas mudam, mas não desaparecem. Como garantir a privacidade do teletrabalhador, ao mesmo tempo que se tem de reconhecer o poder diretivo e fiscalizador da atividade por banda do empregador? Como garantir o respeito pelos tempos de trabalho e de descanso, com a efetiva desconexão profissional do teletrabalhador? Como regular aspectos como por exemplo, o dos acidentes de trabalho, quando o trabalhador labora a partir de sua casa? Será o teletrabalho um instrumento de flexibilização, potenciando a conciliação entre vida profissional e vida pessoal e familiar do trabalhador? Ou o teletrabalho potencia, isso sim, a confusão entre estas várias esferas da vida do trabalhador? Como forjar sentimentos de solidariedade entre os teletrabalhadores, quando estes trabalham solitariamente, a partir do seu domicílio, sem o convívio presencial, ombro a ombro, que sempre estimulou a solidariedade?

Por outro lado, a uberização do trabalho e o trabalho prestado via aplicativos, no âmbito de plataformas digitais, também já eram conhecidos antes da pandemia, sobretudo no domínio do transporte de passageiros. Mas a pandemia acelerou a plataformização e tornou esse fenômeno ainda mais visível, sobretudo no que tange ao trabalho dos entregadores, essas pessoas que, tantas vezes, nos trouxeram a casa a refeição que deixamos de poder tomar no restaurante. Quem são essas pessoas? Prestadores de serviços realmente autônomos? Empreendedores, que exploram o seu negócio? Ou, afinal, são, por regra, trabalhadores dependentes, ou trabalhadores dependentes do séc. XXI? A plataformização do trabalho está aí, em crescendo, cada vez mais presente e diversificada, nos vários serviços que são prestados via apps, lançando desafios enormes ao Direito do Trabalho, pensado formas de prestar trabalho em tempos analógicos, pré-digitais.

Disto e de muito mais — de trabalho digno, de terceirização, de igualdade de gênero, de autonomia privada, etc. — trata este livro, que tenho a honra e o gosto de prefaciar. Um trabalho coletivo, de equipa, coordenado pela mão sábia da Professora Benizete Ramos de Medeiros. Numa época em que o Direito do Trabalho vem sofrendo transformações profundas, recomendo vivamente a leitura desta obra. O Direito do Trabalho precisa se adaptar, se modernizar, se diversificar, mas, ao meu ver, sem perder a alma, sem se desviar do fundamento normativo e axiológico que, desde a primeira hora, o anima — o princípio da proteção do trabalhador e a consideração de que o trabalho não é, não é mesmo, uma mercadoria.

 

João Leal Amado

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

 

 

Conheça a obra

Sobre a obra
Prefácio
Sumário
Sobre a coordenadora
Folheie

 

1 de 4