Curso de Direito Constitucional do Trabalho
Prefácio
Quais características uma obra jurídica deve possuir para tornar-se referência no tema a que se propõe analisar? Deixo propositadamente essa pergunta na imaginação do leitor para nela igualmente transportá-lo aos inúmeros outros dilemas que permeiam a mente do autor ou autora ao escrever um livro, desde a sua concepção até ver, pronto e acabado, o primeiro exemplar: a elaboração do projeto; os temas a abordar; a coerência da argumentação; a qualidade da pesquisa; a natureza da abordagem; a resistência para não sucumbir à tentação da (falsa) erudição; a clareza do vocabulário.
Uma vez concluído o texto, as atenções se voltam ao projeto gráfico e, lançado, surgem outras dúvidas, como a repercussão na comunidade à qual se dirige, as opiniões e críticas. Esse é o universo que compõe, com maior ou menor intensidade, o que se pode chamar de “angústia criativa” e se multiplica em progressão geométrica quando se trata de obra escrita a quatro mãos. Além das preocupações naturais já mencionadas, outras se somam: a escolha (correta) da parceria; a harmonia dos argumentos e das conclusões; a identificação de pontos em comum no pensar e no escrever, enfim, questionamentos cujas respostas surgem ao longo da “vida própria” que a obra vai aos poucos adquirindo.
Mas todas essas dúvidas rapidamente se dissipam ao se iniciar a leitura deste Curso de Direito Constitucional do Trabalho, de Rosângela Rodrigues Dias de Lacerda e Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale. A começar pela sólida formação acadêmica das autoras. Jovens nordestinas de origens diferentes (baiana e potiguar), em comum o Mestrado na Bahia (na Universidade Federal) e o Doutorado em São Paulo: na Universidade de São Paulo, Rosângela, e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Sílvia, esta última com Pós-Doutorado na secular Universidade de Salamanca.
Contam ainda com experiência acumulada no magistério em instituições de ensino públicas e privadas e entidades outras, participação em conselhos editoriais, ampla produção científica por meio de artigos e livros.
Também se aproximam no exercício da magistratura do trabalho: Sílvia no cargo desde 2007 e Rosângela com permanência por três anos; atualmente no Ministério Público do Trabalho. Essa importante qualificação é o prenúncio – comprovado – da densidade científica da obra, cujo título denuncia o propósito de consolidar a construção dogmática em torno de um Direito do Trabalho calcado nas premissas e nos valores assentados na Constituição. Talvez até se pudesse falar que as autoras pretendem um novo Direito do Trabalho, fortalecido, densificado e dignificado, tal como deve ser o homem trabalhador, em função do valor emprestado pela Constituição de 1988 ao trabalho humano enquanto direito fundamental de natureza social.
Direito do Trabalho esse, diga-se de passagem, tão maltratado na atualidade, a começar pela equivocada – embora frequente – invocação da “Análise Econômica do Direito”, encontrada em decisões que insistem em desconstruir os pilares fundantes desse importante ramo do Direito e ignoram a dura realidade de quem labora para viver (ou sobreviver).
O livro é dividido em duas partes (Geral e Especial). A primeira delas se destina a situar o leitor na fase atual do constitucionalismo; para tanto, as autoras promovem uma ampla e densa retrospectiva dos diversos fundamentos filosóficos que antecederam e deram origem ao neoconstitucionalismo, ricamente analisado, como o jusnaturalismo racionalista, o racionalismo kantiano e o positivismo.
A reconstrução do papel do Estado mereceu atenção especial, desde a formação do Estado liberal até o Estado Constitucional de Direito, no modelo Pós-Social, e os princípios que o amparam, como vigas-mestras que lhes dão sustentação e fornecem ao intérprete a imprescindível estrutura valorativa encampada em 1988 a partir da qual deve ser lido e interpretado o sistema jurídico, pois, como afirma Carlos Ayres Brito, “toda a principiologia fundamentante de uma Ordem Jurídica se inicia com a Constituição e daí é que se esparrama pelos demais setores do Direito” De igual modo, são fornecidas as imprescindíveis ferramentas da hermenêutica constitucional contemporânea, iniciada pela análise de sua própria crise e complementada com o estudo individualizado das diversas teorias que alimentam o pós-positivismo; com isso, solidificam a compreensão dos direitos assegurados ao trabalhador enquanto direitos sociais fundamentais, repita-se, dissecadas, como são, as suas premissas teóricas, a sua dimensão como sistema de valores e a plena e imediata incidência na relação de emprego, de modo a corroborar o que diz Guilherme Dray: “o Direito do trabalho, ainda que instrumentalizado por alguns desideratos econômicos que o ultrapassam, não pode perder de vista o essencial: a dignidade, a igualdade e a liberdade do trabalhador, enquanto cidadão que atua no mundo produtivo ( ́personality in work ́)”.
Esse, friso, um dos mais interessantes trechos da obra. Capítulo específico que encerra a divisão foi dedicado ao Direito Internacional do Trabalho e a destacada atuação da Organização Internacional do Trabalho como instituição responsável pela produção de normas garantidoras de direitos mínimos aos trabalhadores em todo o mundo. Temas como incorporação ao direito interno, controle de convencionalidade e transconstitucionalismo não passarem despercebidos ao atento olhar das autoras.
A segunda e maior parte – Parte Especial – posso qualificar como uma espécie de “dimensão viva dos direitos fundamentais aplicados à pessoa humana trabalhadora”, por ser estudado, com profundidade, o vastíssimo campo de aplicação dos direitos fundamentais, específicos e inespecíficos, nas relações de trabalho.
Principia-se com a subordinação exatamente para estabelecer os limites constitucionais do controle da atividade produtiva do empregado. Percorre as suas diversas modalidades, as clássicas e as formas atuais de manifestação, com destaque para a visão crítica da “uberização” das relações de trabalho, o (falacioso, digo eu) discurso do empreendedorismo, o capitalismo de plataforma digital e o trabalho autônomo instituído pela “Reforma Trabalhista”.
O estudo dos direitos fundamentais inespecíficos do cidadão trabalhador merece atenta leitura pela riqueza do seu conteúdo.
Intrincadas questões jurídicas relacionadas às múltiplas dimensões da igualdade e não discriminação são tratadas com rigor científico: estereótipo, preconceito, discriminação e estigma, por exemplo, são aspectos não valorizados (dizem as autoras) e raramente estudados (acrescento) em obras jurídicas, o que também se verifica em temas correlatos, como modalidades de discriminação, business necessity defense, disparate impact theory, bona fide occupational qualification, prova estatística e ações afirmativas.
Certamente o desejo foi não deixar de lado nada considerado relevante em cada tema. A manifestação concreta da subordinação na relação de emprego por meio do poder diretivo igualmente confirma a solidez da obra e amplitude do seu conteúdo. Ainda que não seja rara em textos outros, é incomum encontrar abordagens que enfrentem as suas bases filosóficas, teóricas e normativas; dimensões; natureza jurídica; e limites, elementos necessários a embasar a proposta de solução para os casos difíceis que envolvem as diversificadas manifestações do direito fundamental à liberdade: de expressão e opinião; de crença e religiosa; política; de trabalho, ofício ou profissão; de agir; de locomoção e circulação; e de associação sindical.
Essa, aliás, é uma das características marcantes do livro: são revisitados os variados fundamentos, as correntes filosóficas e as múltiplas teorias que compuseram a formação do pensamento sobre cada instituto ou tema na sua dimensão histórico-evolutiva, de modo a possibilitar a compreensão do hoje a partir do ontem; o contemporâneo sem descurar do passado. Convém ressaltar, porém, que as autoras não se limitaram à mera recomposição da literatura: manifestam a sua posição, sobremaneira crítico-científica.
Nesse mesmo trilho, os grandes debates da atualidade em torno dos direitos fundamentais e relações de trabalho ganharam ênfase. Além dos exemplos já mencionados, podem ser acrescentados: privacidade e intimidade aplicadas nas entrevistas de emprego e seleção de pessoal; experiência, antecedentes criminais e cadastro em serviços de proteção ao crédito; proteção da informação genética do empregado aplicada aos exames médicos; imposição de exames toxicológicos e tratamentos médicos ou terapêuticos; revistas pessoal e íntima; vigilância eletrônica e proteção a mensagens eletrônicas; controle de idas ao banheiro; relacionamentos amorosos entre empregados; direito ao nome e à imagem do empregado; proteção de dados pessoais; devido processo legal e relações privadas; assédios moral e sexual; limites constitucionais à autonomia privada coletiva; meio ambiente do trabalho, nele incluídas a problemática do acidente do trabalho e a responsabilidade decorrente, e terceirização.
A pesquisa é vasta e o simples percorrer das referências possibilitará encontrar nomes clássicos e contemporâ neos, brasileiros e de outros países, da Filosofia, da Sociologia e da Psicologia; do Direito: Constitucional, do Trabalho, Ambiental, Empresarial e Internacional Público; da Hermenêutica e da Administração; além de rica pesquisa na jurisprudência dos tribunais brasileiros e de outros países, nas normas nacionais e internacionais.
Por isso mesmo, os temas não são tratados “a voo de pássaro”. Aliás, se coubesse uma metáfora, diria que as autoras agiram tal como a “Águia-Pescadora”, capaz de, nas alturas, identificar o seu alvo, lançar-se em direção a ele e, com precisão em voo certeiro, mergulhar o necessário para atingi-lo.
Assim é o texto. A investigação é tão profunda e precisa quanto necessária para o que se propõe a ser não apenas um manual, mas um manual de referência no Direito Constitucional do Trabalho, cuja missão será influenciar as gerações de hoje e do amanhã a pensar criticamente o papel desempenhado pelo trabalho humano na sociedade contemporânea e fortalecer a convicção da necessidade de que cada um possa contribuir para a construção – ou reconstrução, quem sabe – de uma sociedade que prime por alcançar os valores ditados no Preâmbulo da Constituição, seja fraterna, pluralista, sem preconceitos e fundada na harmonia social.
Nesse estranho e diferente período de pandemia da COVID-19, todos tivemos a oportunidade de presenciar que, em tempos de indústria 4.0, novas formas de trabalho, trabalho por aplicativos, controle por algoritmos, sociedade pós-moderna, se mostrou igualmente importante a labuta de tantos quantos se expuseram e se expõem, com risco à própria vida, para garantir que a vida de outros continuasse e continue a ser vivida. Não há sociedade sem trabalho humano; não há – ou não deve haver – trabalho humano sem proteção jurídica.
Posso, então, retornar à indagação inicial e, ao respondê-la, afirmo, sem medo de errar: pela qualidade que possui, este Manual de Direito Constitucional do Trabalho reúne todos os predicados para tornar-se referência nesse ramo do Direito. O tempo comprovará!
Boa leitura!
Brasília, janeiro de 2021
Cláudio Brandão
Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
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