Apresentação da Revista LTr | Junho de 2022
Por Adriane Reis de Araujo;
O Dia do Orgulho LGBTQIA+ celebra a Rebelião de Stonewall Inn, ocorrida em 28 de junho1969, quando referido grupo norte-americano se revoltou contra uma série de invasões da polícia novaiorquina aos bares, prisões, bem como represálias de autoridades por eles enfrentados. A Revolta de Stonewall Inn é tida como o “marco zero” do movimento de igualdade civil de homossexuais no século XX e inspirou, já no ano seguinte, a 1ª Parada do Orgulho Gay, com o objetivo de lembrar estes fatos e fortalecer o movimento de luta contra o preconceito em razão da orientação sexual.
No Brasil o “movimento gay” começou a se organizar ao final da década de 70, com o objetivo de defender o livre exercício da sexualidade e reivindicar direitos iguais. Em 2007, a 10ª Parada Gay em São Paulo registrou o maior recorde de público LGBTQIA+ no mundo, contabilizando 2,5 milhões de pessoas e, três anos depois, todas as capitais brasileiras e boa parte dos municípios brasileiros de grande e médio porte tinham referido evento em seu calendário. Entre as diversas bandeiras de luta do movimento, merece destaque a retirada em 1985 do “homossexualismo” da lista de transtorno mentais pelo Conselho Federal de Medicina.
A visibilidade conquistada por marcos comemorativos não se reflete na legislação brasileira. O texto constitucional de 1988 silenciou a respeito de direitos e garantias pautados na orientação sexual. A tentativa de inserir essa expressão no art. 3º, IV, foi derrotada na Assembleia Constituinte Nacional e, posteriormente, as duas tentativas de inclusão do termo por meio de Propostas de Emenda Constitucional, que foram arquivadas. Merece destaque a PEC n. 67/99, do deputado Marcos Rolim, que previa, de forma concomitante, a inclusão dos termos “orientação sexual” e “crença religiosa” nos arts. 3º, IV, e 7º, XXX, da CRFB.
Na legislação ordinária federal há poucos direitos positivados. A Lei Maria da Penha afirma expressamente se aplicar a todas as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, independente da orientação sexual (art. 2º). Já o art. 17 da Lei n. 12.852/2013 (Estatuto da Juventude) determina que jovens de 15 a 29 anos não sejam discriminados por sua orientação sexual. Há, contudo, a regulamentação de sanções a práticas discriminatórias em normas estaduais e municipais.
Em pesquisa no site do Congresso Nacional, os mais de 50 projetos de lei sobre direitos da população LGBTQIA+, desde a redemocratização, denunciam a morosidade no tratamento dos direitos e garantias desse grupo. A maioria não foi aprovada pelas duas casas ou aguarda análise de comissões temáticas e pareceres de relatores.
Passadas três décadas, os direitos LGBTQIA+ estão assentados em decisões administrativas e jurisprudenciais que, corretamente, têm suprido a omissão do Poder Legislativo federal na positivação do respeito à dignidade humana e à liberdade sexual das pessoas, bem como na repressão à LGBTfobia. Entre os temas tratados, destacam-se os direitos de união homoafetiva (Resolução Normativa CNIg n. 77/2008; ADI n. 4.277 e ADPF n. 132, Rel. Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJE 14.10.2011), direito à cirurgia de redesignação de sexo (Resolução-CFM n. 1.482/97, Portaria n. 1.707/2008 do Ministério da Saúde), a alteração do prenome e gênero (RE 670.422, rel. min. Dias Toffoli, j. 15.8.2018, P, DJE de 10.3.2020, Tema 761), o uso do nome social (Resolução CNJ n. 270/2018, Portaria MPT n. 1.036/2015, Nota Técnica-CNMP n. 8/2016) e a criminalização da LGBTfobia (ADO 26, rel. min. Celso de Mello, DJE 28.06.2019; MI 4.733, Rel. Min. Edson Fachin; Súmula n. 11/2019, Conselho Federal da OAB). Temas importantes como o uso do banheiro conforme o gênero (RE 845.779 RG, rel. min. Roberto Barroso, j. 13.11.2014, P, DJE de 10.3.2015, Tema 778) e a extensão da licença-maternidade para a mãe não gestante em união homoafetiva (RE 1.211.446 RG, rel. min. Luiz Fux, j. 7.11.2019, P, DJE de 19.11.2019, Tema 1.072) estão pendentes de julgamento do mérito, o que tem contribuído para a recalcitrância no cumprimento desse direito.
A despeito de toda alteração regulamentar e jurisprudencial, segundo pesquisa do LinkedIn, realizada em 2019, 50% das pessoas LGBTQIA+ em atividade profissional de diversos setores e regiões do país afirmaram ter assumido abertamente sua orientação sexual no trabalho, 25% já contaram para alguns de seus colegas e 25% não contaram para ninguém. Entre as pessoas heterossexuais, 58% declararam conhecer algum colega de trabalho LGBTQIA+, independente da pessoa ter lhe contado ou de ter descoberto de outra maneira.
No grupo daqueles que não contaram para ninguém, 22% admitem ter medo de represália por parte de seus colegas e 32% afirmam que escondem sua orientação sexual dentro e fora do trabalho. Neste ano o IBGE divulgou a primeira pesquisa sobre o perfil das pessoas LGBTQIA+, realizada por meio dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde. Nela, 2,9 milhões de pessoas com mais de 18 anos se declararam homossexuais ou bissexuais, o que corresponde a 1,9% de pessoas entrevistadas. Em 0,1% das respostas, as pessoas se declararam com outra orientação sexual. Os maiores percentuais de homossexuais ou bissexuais estão entre as pessoas das classes de rendimentos mais elevadas. Tal fator pode ser consequência do fato de as pessoas com maior nível de instrução e renda ter maior entendimento e menos barreiras para declarar sua orientação sexual.
Chama a atenção o fato de terem se recusado a responder essa questão um número maior de entrevistados (3,2%), o que totaliza 3,6 milhões de pessoas. A coordenadora da pesquisa atribui esse resultado à insegurança em se autoidentificar com orientação diversa da cisheteronormativa: este comportamento pode estar associado ao medo, contexto cultural, contexto familiar, desconfiança com o uso da informação ou mesmo a indefinição quanto à sua orientação sexual.
A pesquisa do IBGE foi criticada por sua omissão na coleta de dados quanto à identidade de gênero. O apagamento estrutural e institucional das pessoas trans em nossa sociedade tem contribuído para sua exclusão do mercado de trabalho (menos de 10% conseguem trabalho fora da prostituição), para estimular sua exploração sexual, bem como para que o Brasil, por 13 anos seguidos, seja líder no número de homicídio de pessoas trans no mundo. A segurança pública no país segue em muitos casos ignorando as questões de gênero, mesmo diante dos dados alarmantes (4.042 assassinatos nesse período), sendo que em onze estados brasileiros não há dados sobre LGBT+fobia, conforme relatório da Tansgender Europe (TGEU) de 2021.
Certamente, a ausência de tipo penal específico contribui para isso. Neste ano, no Dia Internacional contra Homofobia, Bifobia e Transforia, o Secretário-geral da ONU se pronunciou contra práticas profundamente prejudiciais e humilhantes, tais como as chamadas terapias de “conversão”, intervenções cirúrgicas e tratamentos forçados e inspeções físicas degradantes contra esse grupo. Ele ressalta que milhões de pessoas LGBTQIA+ no mundo continuam a sofrer com a violência, criminalização, discurso de ódio, assédio, exclusão da educação, do emprego, de cuidados de saúde, do desporte e da habitação. Essas pessoas estão entre as mais marginalizadas e afetadas por crises econômicas, climáticas
e sanitárias.
Vale lembrar que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU tem como pilares o enfrentamento à desigualdade e a garantia de direitos iguais para todas as pessoas, não deixando ninguém para trás. Em 2021, mais de 30 especialistas em direitos humanos dessa organização internacional pediram que governos instituições religiosas e líderes religiosos “abracem com respeito e compaixão a comunidade lésbica, gay, bissexual, transgênero e diversidade de gênero”, destacando que a liberdade religiosa deve ser exercida com respeito aos direitos humanos. O compromisso do governo brasileiro com referida Agenda requer a construção de práticas, políticas públicas e leis para a promoção da igualdade e não discriminação de pessoas LGBTQIA+ também no mundo do trabalho, de maneira ágil e conclusão satisfatória. Tal proceder acompanharia iniciativas de boa parte da sociedade civil e de grandes empresas na promoção de ações afirmativas e letramento de gênero, pois é sabido
que a diversidade aumenta a produtividade.
Adriane Reis de Araujo
Procuradora Regional do Trabalho.
Coordenadora nacional da Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidade e Eliminação da Discriminação do MPT. Doutora em Direito das Relações de Trabalho e Previdência Social pela Universidade Complutense de Madri/Espanha.
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