Prefácio | 6357.9

Um dos efeitos mais marcantes da pandemia que tem assolado o mundo nestes tempos terríveis que atravessamos consiste, sem dúvida, no aumento da presença e na maior visibilidade do tecnológico, do digital, do remoto, do virtual, nas nossas vidas. A todos os níveis, em todos os planos das nossas vidas. E também, claro, no plano da nossa vida profissional. O exemplo mais óbvio constitui, sem dúvida, a centralidade que o teletrabalho, o trabalho prestado à distância, fora da empresa (amiúde, prestado a partir do domicílio do trabalhador), por meio de recurso que as tecnologias de informação e de comunicação, passou a deter.

De modalidade contratual com expressão marginal ou residual no plano estatístico, o teletrabalho revelou-se uma peça essencial no combate à propagação do novo coronavírus. A pandemia obrigou ao confinamento, ao distanciamento, ao isolamento, sendo que, em muitas empresas e em muitos setores, a prossecução da atividade laboral foi mantida em novos moldes, à distância, com o precioso e indispensável auxílio das tecnologias hoje disponíveis.

A experiência vivida durante a pandemia desvelou as insuficiências do regime jurídico do teletrabalho para dar resposta a várias questões que a praxis veio a colocar: o problema dos custos (quem suporta os custos inerentes ao trabalho à distância?), o problema do tempo (como conciliar vida profissional e vida pessoal e familiar, quando a nossa casa se converte no local de trabalho? como assegurar a separação entre tempo de trabalho e tempo de vida, com a inerente desconexão do trabalhador?), o problema do controlo e vigilância patronal (até onde pode ir o legítimo desejo patronal de vigiar, dirigir e monitorizar a atividade do teletrabalhador? onde começa a inviolável reserva da vida privada deste, para mais quando se encontra na sua casa?), o problema do isolamento (como evitar que o teletrabalho acentue o isolamento, quiçá a solidão, do teletrabalhador, que deixa de ter no trabalho presencial, prestado na empresa tradicional, um espaço de convivência e de sociabilidade? como permanecer solidário, apesar de solitário?), o problema da segurança e saúde no teletrabalho (como adaptar as normas sobre acidentes de trabalho à circunstância de o trabalhador passar a trabalhar a partir da sua própria casa?) etc. Passamos a trabalhar a partir de nossa casa ou, como alguns receiam, passamos a morar no emprego?

A pandemia veio acelerar um processo que já se encontrava em curso, de transição digital, em que o virtual toma o lugar do presencial, em que a comunicação e a interação humana se processam com largo recurso aos dispositivos tecnológicos hoje disponíveis para a generalidade da população (o computador, a internet, o smartphone etc.). A inteligência artificial, as apps que para tudo servem, a robotização que vai alastrando, tudo sinais de um mundo novo, o mundo 4.0 (quiçá não tão admirável assim...) que já chegou e que vai continuar a surpreender a espécie humana nas próximas décadas.

Os reflexos de tudo isto no plano das relações laborais são óbvios, são incontestáveis, são imparáveis e são irreversíveis. E temos a perfeita consciência de que os problemas suscitados pela inteligência artificial, pelo algoritmo, pelas apps, pela robotização, por tudo isto, no terreno laboral, são inúmeros e, quiçá, muitos deles ainda nem sequer os estamos a entrever.

Nesta obra, que temos a honra de prefaciar, um vasto e diversificado lote de autores dedica-se a refletir sobre esta panóplia de temas, todos desafiantes para o Direito do Trabalho, suscitados pelo prodigioso avanço da tecnologia. Desde o desafio representado pela prestação de serviços via apps, através de plataformas digitais que permitiram pôr em contacto a oferta e a procura de um determinado serviço (o transporte de um passageiro, a entrega de uma refeição em casa etc.) em moldes inovadores, interpelando o Direito do Trabalho, sobretudo quanto à magna questão de saber se a atividade desses prestadores de serviços poderá ou não ser regulada por este ramo do direito, até ao que poderíamos designar por desafio final, a questão de saber se, a prazo, o trabalho humano não vai perder a sua atual centralidade, se a inteligência artificial e os robôs não irão tornar dispensável que as pessoas humanas trabalhem e se, portanto, o Direito do Trabalho está condenado a desaparecer, acompanhando o inexorável decesso do trabalho humano.

As questões que se colocam são múltiplas e de grande complexidade. O algoritmo, por exemplo, começa a ocupar um lugar crescente nos vários domínios da relação de trabalho (na fase da seleção dos trabalhadores a contratar, na distribuição de tarefas e na monitorização e avaliação da prestação realizada pelos trabalhadores, na seleção dos trabalhadores a despedir etc.), sendo cada vez mais evidentes os riscos de, sob a capa da pretensa cientificidade, neutralidade e objetividade do algoritmo, velhas discriminações serem reproduzidas e relegitimadas.

O algoritmo, enquanto sistema computacional de matemática aplicada, não tem coração nem sensibilidade, mas a inteligência artificial pode reproduzir os preconceitos, conscientes ou não, de quem programa o algoritmo, isto é, de quem fornece ao algoritmo os dados (input) que irão permitir ao algoritmo tomar as suas decisões (output).

Em particular, o trabalho prestado com recurso a plataformas digitais, seja a que nos proporciona uma alternativa de transporte ao clássico táxi, seja a que nos permite encomendar a refeição através de uma cómoda app, tem colocado questões delicadas, dir-se-ia que à escala universal, a primeira das quais consiste na qualificação da relação que se estabelece entre a empresa que opera na plataforma digital e os respectivos prestadores de serviços, aqueles que transportam os clientes ao seu destino (os motoristas) ou que lhes levam a casa o produtos (os entregadores). As apps, ao permitirem novas formas de prestar serviços, colocando em contacto a oferta e a procura, representam, sem dúvida, um dos desafios emergentes para o Direito do Trabalho. Afinal, os serviços fornecidos via apps relevam para o Direito do Trabalho, situando-se dentro das fronteiras deste ramo do ordenamento? Ou, pelo contrário, quem presta tais serviços são trabalhadores independentes, são, quiçá, microempresários, cuja atividade já está para além das fronteiras do direito laboral?

É claro que qualificar o trabalho em plataformas, o trabalho realizado com recurso a apps, como autónomo ou dependente sempre dependerá de uma apreciação casuística, que leve em conta os dados resultantes de cada tipo de relação, de cada concreto contrato. E também é claro que estas novas formas de prestar serviços levantam consideráveis dificuldades de enquadramento, até porque, infelizmente, não dispomos de um qualquer “subordinómetro” que nos forneça uma resposta infalível e irrefutável. Não espanta, por isso, que a doutrina e os tribunais, um pouco por toda a parte, se tenham confrontado com esta questão, chegando a resultados nem sempre coincidentes.

De tudo isto e muito mais trata o livro que ora se prefacia. Também do tratamento de dados pessoais dos trabalhadores, da crise pandémica e da insolvência, do cooperativismo, dos testes genéticos, do trabalho intermitente etc. Um livro que, de algum modo, encontra as suas raízes na colaboração estabelecida, há anos, entre o IDET – Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e a Plataforma Dialética, graças ao engenho e ao empenho do seu coordenador académico dos cursos internacionais, Prof. Paulo Renato Fernandes da Silva.

Aos autores, os meus parabéns pelo magnífico trabalho realizado! Ao leitor caberá apreciar os méritos do esforço desenvolvido, que agora, em boa hora, se dá à estampa.

 

João Leal Amado

Vice-Presidente da Direção do IDET.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

 

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