Uber, Ifood, Rappi, Loggi, Lalamove, 99, GetNinjas e outras plataformas semelhantes estão envolvidas na maior polêmica trabalhista dos últimos tempos: afinal, motoristas e entregadores, que fazem o negócio dessas empresas, são parceiros do empreendimento ou são trabalhadores empregados? Mas empregados de quem?
Os primeiros conflitos trabalhistas apareceram ainda em 2015. Nesses quase nove anos a jurisprudência em torno do assunto ainda não foi pacificada, nem na Justiça do Trabalho, nem na Justiça comum, já que pode-se estar tratando de uma relação não trabalhista.
Na falta de uma intervenção legislativa para enquadrar a inovação, recorre-se à velha e boa CLT. De acordo com os artigos 2º e 3º da norma legal, uma relação de emprego existe quando são comprovadas a prestação de trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade (ou habitualidade), onerosidade, subordinação e alteridade.
Os pontos mais controversos são o da subordinação na relação dos motoristas com a empresa, tendo em vista que não há um chefe dando ordens diretas, mas um algoritmo direcionando corridas, e o da habitualidade, já que os motoristas podem definir quando e por quanto tempo querem trabalhar.De acordo com pesquisa do IBGE, referente ao quarto trimestre de 2022, havia no país 1,5 milhão de trabalhadores por meio de plataformas digitais, o equivalente a quase 2% da população ocupada. Desse total, cerca de 780 mil trabalhavam no serviço de transporte de passageiros, 590 mil no de entrega em domicílio e 200 mil na prestação de serviços gerais. O IBGE informa ainda que 77% dos plataformizados – essa a nomenclatura adotada pelo instituto para esse tipo de profissional – trabalhavam por conta própria e 9% eram empregados sem carteira assinada. Em outra medida, informa também que 70% atuam na informalidade. Outra informação de interesse laboral: porcentagem superior a 85% dos profissionais informou que tanto o preço do serviço como a escolha dos clientes eram feitos pelo aplicativo.
Empreendedor ou empregado?
Quem se atreve a responder a essa pergunta, por enquanto, é o Judiciário. Levantamento da plataforma de jurimetria Data Lawyer, publicado pelo jornal Valor Econômico, mapeou que, de 15 mil processos contra Uber, 99 e Cabify (que encerrou as operações no Brasil), 5,5 mil decisões foram favoráveis aos aplicativos e 2,3 mil, aos trabalhadores. Apenas 148 decisões foram totalmente procedentes, com reconhecimento de vínculo de emprego. O levantamento mostra, ainda, que foram homologados 3.252 acordos. A estratégia jurídica das empresas diante da iminência de derrota é encerrar os casos por acordos, evitando assim que cresça o número de precedentes desfavoráveis.No TST, o cenário ainda é incerto. As 2ª, 3ª, 6ª e 8ª Turmas têm decidido pelo reconhecimento de vínculo. Já as 1ª, 4ª e 5ª negam os pedidos. Na Seção de Dissídios Individuais I, dois casos estão sendo analisados, ainda sem definição por pedido de vista. Uma ala sugere, inclusive, levar o tema ao Pleno como repetitivo, com a fixação de tese vinculante.
O ministro Ives Gandra Filho, do TST, vê com preocupação a tendência de voto da SDI-I em reconhecer o vínculo: “Impressiona ver como o TST, com seu excessivo protecionismo, contrário inclusive à vontade de trabalhadores e empregadores, tem mais acirrado do que harmonizado as relações de trabalho e espantado investimentos em nosso país. Na verdade, tem exercido um protecionismo às avessas, gerando empregos em outros países”, criticou ao Anuário da Justiça Brasil 2022.
Para condenar a Uber, a 2ª Turma usou a chamada tese da “gamificação”, afirmando que a empresa premia ou pune prestadores de serviço como em um jogo de videogame ou reality show. Com base no entendimento de que os trabalhadores de plataformas estão subordinados à empresa por meio de algoritmos, integrantes da corte reconheceram o vínculo de emprego entre um ciclista e a Uber. A decisão aplica argumento explorado em estudos e em decisões judiciais no Brasil e na Europa.
A Uber tem divulgado campanhas em redes sociais em que afirma que o trabalho dos motoristas deve ser encarado como esporádico, ou seja, como uma fonte de renda extra. Para a presidente da Anamatra, Luciana Paula Conforti, juíza do trabalho em Pernambuco, esta é apenas meia verdade. A realidade mostra que além daqueles que fazem do Uber um bico, existem os que trabalham com dedicação exclusiva e dependem totalmente desse trabalho para sobreviver. Para ela, os diferentes devem ser tratados de forma diferente.
Recente pesquisa do Datafolha mostra que três em cada quatro trabalhadores por aplicativo preferem manter o atual modelo, com autonomia para escolher a plataforma de sua preferência em vez de uma contratação com carteira assinada. Mesmo assim o Ministério Público do Trabalho se sentiu autorizado a falar por todos e moveu ações civis públicas contra quatro empresas para reconhecer o vínculo de todos. A pesquisa diz que nove em dez trabalhadores dizem aprovar novos direitos, desde que não interfiram na flexibilidade.
No xadrez processual, quando condenadas nas instâncias inferiores e no TST, as empresas têm se utilizado da reclamação constitucional ao STF com o argumento de que as cortes trabalhistas estariam violando as decisões do Supremo que legitimou a terceirização de toda a forma de trabalho (julgamentos da ADPF 324 e do RE 958.252 —Tema 725 de percussão geral).
Com uma composição de ministros com uma visão mais liberal em torno da economia, as reclamações têm sido todas acolhidas no Supremo, com os ministros cassando ou suspendendo decisões que davam o vínculo a motoristas. Apenas os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber (estes dois últimos aposentados) entendiam que caberia à própria Justiça do Trabalho julgar esses casos, valorando as provas, algo que a reclamação não permite.
Recentemente, o ministro Edson Fachin se curvou ao entendimento predominante, considerando o princípio da colegialidade. Em junho, o ministro Aloysio Corrêa da Veiga, vice-presidente do TST, admitiu recurso extraordinário da Uber por violação ao princípio da livre iniciativa depois de condenada na 8ª Turma. Assim, o caso será submetido à análise do Supremo.
Ao julgar ação coletiva promovida pelo Ministério Público do Trabalho, o juiz Mauricio Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou a Uber a pagar multa de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos, além da obrigação de registrar todos os seus motoristas no país. “As ações e omissões, de forma dolosa, geraram uma ofensa aos motoristas em geral, mas também à concorrência, a exemplo dos taxistas, também ao Estado, pela ausência de possibilidade de inclusão dos seus motoristas no sistema de previdência social e à saúde pública, por levar ao SUS muitos dos motoristas doentes, acidentados, contaminados sem que de fato haja contribuição para o custeio do amplo sistema assistencial brasileiro”, disse o juiz na sentença, de mais de cem páginas.
A decisão só não causou mais escândalo diante da certeza de que não vai prosperar. A empresa informou que iria recorrer e não adotaria nenhuma das medidas elencadas na sentença antes que todos os recursos cabíveis sejam esgotados. Também disse em nota que a decisão representa um entendimento isolado e contrário à jurisprudência que vem sendo estabelecida pela segunda instância do próprio TRT de São Paulo em julgamentos desde 2017, além de outros TRTs e do TST.
Em outubro, foi a vez da Rappi ser condenada pela 4ª Turma do TRT da 2ª Região, São Paulo, a contratar como celetistas todos os entregadores que lhe prestam serviços, além de pagar indenização equivalente a 1% do faturamento de 2022, em razão da lesão coletiva aos direitos dos trabalhadores. O julgamento foi unânime. Na visão do juiz do Trabalho convocado Paulo Sérgio Jakutis, relator da ação, a atividade da Rappi “conquanto revestida de ares de modernidade e futurismo, configura-se numa verdadeira tentativa de volta a um passado onde os trabalhadores sofreram muitíssimo”. A Rappi afirmou que vai recorrer da decisão da 4ª Turma.
“A ausência de legislação específica torna qualquer reconhecimento de vínculo empregatício, nesses casos, passível de questionamentos quanto à sua legalidade, dada a vedação à interpretação extensiva na aplicação de sanções. Embora a subordinação possua um conceito relativamente aberto, este não deve ser demasiadamente expandido pelo Judiciário para abranger formas de emprego não previstas anteriormente”, corrobora a advogada Lara Prado, do escritório Diamantino Advogados Associados.
O próprio TST já se manifestou nesse sentido: “As novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a edita, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego” (AIRR-10575- 88.2019.5.03.0003).
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou que uma proposta de regulamentação do trabalho por aplicativos de transporte de passageiros e de entrega será encaminhada ao Congresso. O texto manteria esses trabalhadores como autônomos e criaria uma contribuição obrigatória na Previdência Social para a categoria e para as plataformas. Mas, novamente, é motivo de muitas discordâncias.
🧾 Por Thiago Crepaldi
Fonte: Conjur | Consultor Jurídico
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