A Sentença no Processo do Trabalho

Preâmbulo

O momento em que o juiz, afastando-se do bulício do fórum, se recolhe para redigir a sentença, traduz, sem dúvida, o mais notável acontecimento do seu ofício. Acompanhado, apenas, por algumas convicções e por inúmeras incertezas que, num borbulhar crescente, costumam tomar-lhe de assalto o espírito nessas  ocasiões, ele sente pesar sobre seus ombros, mais do que nunca, a responsabilidade do cargo. Na solidão do gabinete ou em algum lugar recôndito de sua casa, terá que decidir, com equilíbrio, segurança, sensibilidade e independência, sobre o direito, em torno do qual as partes contenderam, ardentemente. A elaboração da sentença constitui, por isso, acima de tudo, um exercício de solidão responsável, operosa e inquietante.

Se, para o juiz, esse momento é marcado pela reflexão, para as partes o é pela expectativa e, não raro, pela angústia, por saberem que, após uma lide extenuante, que lhes consumiu tempo e dinheiro preciosos, a sentença poderá ser a causa de sua ruína ou de sua fortuna, de seu regozijo ou de sua tragédia pessoal. O receio do insucesso no litígio e o sentimento de eventual injustiça, aí se unem para depositar, caprichosamente, no espírito das partes — máxime no do trabalhador — uma perversa inquietação. O trabalhador, mais do que o seu adversário, sofre a agonia desse momento, pois enquanto, para o réu, a demanda é uma das tantas já enfrentadas, para o trabalhador representa, muitas vezes, a sua causa exclusiva, o seu day in Court.

Bendito é o juiz que sente a responsabilidade da ocasião e deixa-se dominar por esse sentimento. Seria ideal, a propósito, que os juízes, mesmo em fim de carreira, sentissem, no peito, a mesma inquietação que sentiram ao proferir as primeiras sentenças de sua vida — e das quais, muitos, nem sequer se recordam. Quando o cotidiano dos dias faz morrer no coração do magistrado esse sentimento, essa emoção de decidir, as sentenças por ele proferidas tendem a tornar-se mecânicas, glaciais, sem aquela poeira característica da realidade palpitante sobre a qual se debruçou, durante a demanda. O vocábulo sentença, aliás, provém da forma latina sententia, que significa, exatamente, esse “sentir” de que estamos a falar. Decidir com sentimento, porém, não corresponde a decidir de maneira parcial, arbitrária. O juiz é o Estado distribuindo justiça, ou, quando menos, aplicando a norma legal aos casos concretos submetidos à sua cognição jurisdicional. A neutralidade dos pronunciamentos da jurisdição deriva daquele importante compromisso histórico que o Estado assumiu perante os indivíduos, no momento em que, instituindo o monopólio da solução dos conflitos, os proibiu de realizar justiça pelas próprias mãos, ou seja, o exercício da autotutela de seus direitos e interesses respeitantes a bens ou a utilidades da vida.

Como dissemos, em algum ponto do livro, o juiz não é um monólito, um burocrata, um convidado sem alma, a quem a lei não consinta, em nenhum instante, contribuir com suas experiências da vida, suas sensações, sua consciência sobre a finalidade social das normas legais e, também, sobre as circunstâncias dramáticas que, porventura, estejam a assinalar o caso concreto, de sorte a poder adotar, diante desse quadro, uma atitude menos dogmática e mais vanguardeira, na busca de uma efetiva realização da justiça — esse ideal imarcescível, que habita o coração do homem e contra o qual os sistemas jurídicos, submissos a certas ideologias políticas cruéis, insistem em conspirar. A sentença, portanto, é produto não só da inteligência do magistrado, senão que de sua vontade. Da vontade que deve, em situações especiais, como a descrita, ser transformadora da realidade, perturbadora dos conceitos e anti-igualitariamente justa. Vontade ligada à lei, por certo; mas, acima de tudo, vontade destinada a dar sentido real à lei.

A sentença é o principal acontecimento no microcosmos do processo, o seu ponto de culminância, o seu evento exaustivo. Nem um ato processual realizado deixa de ter, como escopo, direto ou indireto, a preparação do pronunciamento jurisdicional de fundo, que solucionará o conflito inter-subjetivo de interesses, juridicamente tuteláveis. Todos os atos do processo — praticados que são de maneira logicamente preordenada e, quase sempre, preclusivos — convergem para a sentença de mérito, que figura, sob esse aspecto, como o seu polo de atração magnética. A sentença é, enfim, o coroamento do processo. Com ser o mais importante sucesso processual, ela tem a sua validade jurídica condicionada à observância de determinados requisitos formais, previstos em lei, que concernem à sua estrutura (relatório, fundamentação e dispositivo) e à dicção do julgador (clareza, certeza, exaustividade e adequação).

Na terminologia científica do processo, contudo, o vocábulo sentença não guarda sinonímia com julgamento. Aquela, na verdade, é mera resultante deste, a sua expressão material, por assim dizer. No sistema peculiar do processo do trabalho, o julgamento incumbe aos juízes classistas, dele apenas participando o magistrado para desempatar, ou proferir decisão que melhor atenda ao cumprimento da lei e ao justo equilíbrio entre os votos divergentes dos classistas e ao interesse social (CLT, art. 850, parágrafo único). A lavratura da sentença, entretanto, é ato exclusivo do juiz togado. Seria desassisado imaginar que, sendo a sentença um ato submetido ao imperativo da forma, pudesse ou devesse ser redigida pelos juízes classistas, dos quais a norma legal não exige nenhuma formação jurídica para o desempenho das funções. Poder-se-ia, pois, afirmar, em síntese, que, no processo do trabalho, os juízes classistas julgam, enquanto o juiz togado sentencia, não fosse estar a força da realidade prática a demonstrar que, em rigor, o juiz togado é quem julga e sentencia. De qualquer modo — ironia à parte — o certo é que, do ponto de vista estritamente legal, quando constar do dispositivo da sentença que a decisão foi tomada por unanimidade de votos, isso significa que o juiz togado não participou do julgamento...

Atuando, como magistrado, em primeiro grau de jurisdição, neste meu Paraná, pude, não só, sentir a responsabilidade de ter que decidir, a todo momento, sobre o direito calorosamente disputado pelas partes, como acompanhar, de perto, o que a sentença de mérito pode representar para os seus círculos jurídicos, nomeadamente, para o do trabalhador. Instilam-se, por isso, nas páginas deste livro que estou dando a lume, muitas dessas experiências, dessas situações dramáticas por mim amealhadas ao longo do exercício, por mais de dez anos, de uma judicatura intensa. Os juízes sabemos que, no primeiro grau de jurisdição, é onde há palpitações, frêmitos e sobressaltos, pois é aí onde adquirem vida os fatos da causa, onde se revela, enfim, essa realidade pujante e dinâmica, que o conflito de interesses faz surgir — e que aos tribunais chega, esmaecida e esgarçada, sob a forma insípida de relato documental.

Mas o livro não contém, apenas, minhas sensações e emoções; em verdade, só as manifesto nos poucos momentos em que me pareceu que essa revelação poderia dar força ao argumento ou auxiliar na compreensão do assunto tratado. O livro espelha, sobremaneira, a preocupação de empreender um estudo exaustivo da sentença, como provimento jurisdicional supremo, e a tudo o que a ela diga respeito. Nesse mister afanoso, procurei harmonizar, entre si, os aspectos pragmático e doutrinal, de cada tema examinado.

Do ponto de vista sistemático, dividi o livro em duas partes.

À primeira, dediquei considerações de ordem propedêutica, onde busquei sistematizar os princípios informadores do processo do trabalho, comentando-os sob uma óptica designadamente pragmática. Aí também me ocupei com o exame dos pressupostos processuais e das condições da ação, mediante uma visão crítica que teve, como objetivo, preparar as bases para a futura elaboração de uma teoria geral do processo do trabalho, atendendo às peculiaridades deste.

Na segunda parte, mais alongada, discorri sobre o ofício de julgar, fazendo uma breve retrospectiva histórica do assunto, segundo os principais sistemas legislativos de outros países. Procurei, ainda, demonstrar os atos que o juiz sói praticar, na qualidade de reitor do processo, analisando-os criticamente. Esbocei um conceito de sentença e busquei esquadrinhar-lhe a natureza jurídica. Apresentei uma classificação das sentenças, oportunidade em que revi minha opinião, expressa em livros anteriores, para admitir a existência de duas outras classes de sentenças, ao lado das tradicionais (declaratória, constitutiva e condenatória), quais sejam, a mandamental e a executiva. Deitei longas considerações acerca das sentenças que examinam o mérito (definitivas) e das que não o examinam (terminativas), dedicando escólios a cada causa de extinção do processo.

Investiguei a finalidade da sentença, no quadro dos pronunciamentos jurisdicionais e procurei demonstrar os seus requisitos de validade e os seus efeitos jurídicos. Dispensei atenção especial ao estudo dos atos nulos, anuláveis e inexistentes, assim como às sentenças nulas, rescindíveis e inexistentes, com a finalidade de fornecer alguns contributos para a solução prática das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais a esse respeito. Discursei sobre a técnica de sentenciar e, em especial, apontei o procedimento técnico que deve ser observado pelo magistrado, ao elaborá-la, levando em conta cada parte de que ela é formada. Não me descuidei, por fim, de lançar alguns comentários sobre a publicação e a intimação da sentença, assim como a sua integração e correção.

Em todos os momentos, em que as circunstâncias assim exigiam, procurei manifestar, com clareza e de modo fundamentado, o meu ponto de vista acerca dos temas analisados; se, apesar disso, deixei de fazê-lo em algum caso, que me alertem os ilustres leitores, pois não é próprio do meu caráter fazer com que a omissão ou o silêncio conveniente sirvam de pretexto para disfarçar a falta de pensamento ou de convicção.

 

Curitiba, abril de 2017.
Manoel Antonio Teixeira Filho
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