Os Efeitos da Revolução Digital no Direito Coletivo do Trabalho

 

Prefácio

“Só há grupos onde existem fraquezas individuais” ─ eis uma convicção manifestada por António Lobo Antunes. Será mesmo assim? Sendo o ser humano um animal gregário, será que não haverá algum exagero naquela afirmação? Não será aquela uma afirmação marcada por um individualismo radical? Talvez. Em todo o caso, não oferece dúvidas que uma das causas da emergência de fenómenos grupais reside, justamente, na existência de fraquezas e de vulnerabilidades individuais. Por isso, também por isso, os homens e as mulheres reúnem-se, juntam-se, coligam-se, agrupam-se, unem-se.

A relação de trabalho assalariado demonstra-o, à saciedade. Uma relação assente num negócio jurídico de direito privado, decerto. Uma relação de natureza obrigacional, por certo.

Mas, sobretudo, uma relação profundamente assimétrica, isto é, manifestamente inigualitária, pois o trabalhador, a mais de, em regra, carecer dos rendimentos do trabalho para satisfazer as suas necessidades essenciais (dependência económica), fica sujeito à autoridade e direção do empregador em tudo o que diz respeito à execução do trabalho (subordinação jurídica). Para o trabalhador, cumprir é, antes de mais, obedecer, a sua vontade comprometese no contrato, mas também se submete nesse contrato.

Ora, é esta relação de troca trabalhosalário, fundada num (ou disfarçada de?) contrato, relação marcadamente patrimonial (gostese ou não, o trabalho é, nas economias de mercado em que vivemos, tratado como se fosse uma mercadoria) à qual assiste, no entanto, uma dimensão irrecusavelmente pessoal (pois a força de trabalho não é dissociável do trabalhador, e este, tanto ou mais do que sujeito do contrato, é objeto do mesmo), é esta relação estruturalmente desigual e intrinsecamente conflitual, cunhada por uma forte divergência de interesses entre trabalhadores e empregadores, que constitui o cerne da nossa disciplina. E o objetivo precípuo do Direito do Trabalho consiste, justamente, em tentar harmonizar estes interesses conflituantes, funcionando como plataforma de compromisso de interesses sociais e económicos, não raro, contrapostos.

Com efeito, a formação deste ramo do ordenamento jurídico assenta na constatação histórica da insuficiência ou inadequação do livre jogo da concorrência no domínio do mercado de trabalho, em ordem à consecução de condições de trabalho e de vida minimamente aceitáveis para as camadas laboriosas.

O Direito do Trabalho não se compaginava com o ultraliberalismo oitocentista (e, aliás, compaginase algo dificilmente, ainda hoje, com os movimentos de raiz neoliberal), justamente porque se traduz num mecanismo deformador da concorrência, isto é, num mecanismo cuja função principal consiste em limitar a concorrência entre os trabalhadores no mercado laboral. Historicamente, o livre jogo do mercado revelouse antisocial: privados de qualquer proteção legal (abstencionismo estadual) e desprovidos da mínima organização sindical (individualismo liberal), os trabalhadores viramse obrigados a competir acerrimamente entre si na venda da única mercadoria de que dispunham – a força de trabalho. O saldo desta concorrência desenfreada é bem conhecido e é dramático: salários praticamente reduzidos ao mínimo vital, condições de trabalho mais do que precárias, cargas de trabalho insuportavelmente pesadas, inclusive para crianças de tenra idade, etc. A resolução (ou, talvez melhor, a atenuação) desta grave Questão Social passou pela aceitação da intervenção direta do Estado (e desde logo do legislador) no mundo do trabalho e pelo reconhecimento de um estatuto de cidadania ao associativismo sindical e aos seus corolários – em especial a contratação coletiva e a greve.

O Direito do Trabalho é assim, todo ele, produto do homem solidário, não do homem solitário.

Ora, o sindicalismo viveu o seu apogeu no período da fábrica fordista, da fábrica grande, onde os trabalhadores se reuniam e conviviam, um período de grande proximidade entre os trabalhadores, inclusive física, trabalhando lado a lado, conjuntamente, sujeitos à autoridade e vigilância da entidade empregadora, num espaço-tempo bem definido e representado pelas paredes da fábrica (massificação do trabalho dependente, elevada concentração populacional, homogeneização do proletariado, que cimentou uma “consciência de classe” própria, etc.).

Tudo isso mudou, já nas últimas décadas do século passado, mais ainda nos nossos dias. A fábrica e o operário não desapareceram, por certo, mas perderam peso e protagonismo. O setor dos serviços ganhou importância, as transformações tecnológicas aceleraram a mudança, o “trabalho 4.0” emergiu, as empresas magras e musculadas substituíram, em muitos casos, a velha fábrica fordista.

Em paralelo, instalou-se uma certa hegemonia do ideário neoliberal, desde os anos 80 do passado século, um ideário claramente hostil ao sindicalismo (e ao próprio Direito do Trabalho, muitas vezes apresentado como uma “ineficiência” que não deixa o sacrossanto mercado funcionar livremente) e que relança uma ideologia mais individualista, a todos os níveis, também no mundo do trabalho.

Nesse contexto, o espaço para a solidariedade reduz-se, a afirmação do eu, de um eu mais radical, individualista e até solitário, consolida-se.

Em tempos de pandemia, com o recurso massivo ao teletrabalho, prestado à distância, a partir do próprio domicílio do trabalhador, essas tendências acentuaram-se.

Eis a questão: como ser solidário, na solidão das nossas quatro paredes? Nesta sua tese de pós-doutoramento, Teresa Asta Gemignani reflete sobre os efeitos da revolução digital do Direito Coletivo do Trabalho. É manifesto que o novo fascina a Autora: novos tipos de relações de trabalho, o emergente desafio da plataformização do trabalho, um novo modelo de imputação de responsabilidade trabalhista, os efeitos da digitalização no mundo sindical, na negociação coletiva, nos procedimentos de dispensa coletiva, na atuação da OIT – tudo isto, e muito mais do que isto (a análise económica do direito e a teoria dos jogos, a compliance e o alcance da nova sigla ESG, etc.), é objeto de aturada análise por parte da Autora, no âmbito do seu pós-doutoramento no Ius Gentium Conimbrigae, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

É uma obra cuja leitura se recomenda. E este é um assunto que merece a máxima atenção e cuidada reflexão, até porque convém não ter ilusões: a história do Direito do Trabalho confunde-se com a história do sindicalismo e, se o sindicalismo soçobrar, estamos convictos de que o mesmo tenderá a acontecer ao próprio Direito do Trabalho.

 

João Leal Amado

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

 

 

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